O que é
o direito? A quem ele serve? Qual sua relação com outros fenômenos correlatos? Estas
são algumas das perguntas com que venho lidando desde o ano de 1997, ano em que
lecionei pela primeira vez para uma turma de graduação. Era uma turma do curso
de Direito e a disciplina era Filosofia do Direito. Vinte anos depois continuo
lecionando teoria do direito na graduação e no mestrado e tenho que confessar
que as perguntas em nada mudaram.
Se é verdade que as indagações
continuam as mesmas, não é igualmente verdadeiro que as respostas sigam
inalteradas, alheias ao turbilhão que o mundo concreto impõe sobre a evolução
do direito e da própria reflexão sobre o direito. Quando comecei minha
trajetória profissional no magistério superior jurídico eram tempos plenos de
esperança. Tinha-se saído fazia uma década de uma tacanha ditadura militar que
durara pouco mais de vinte anos, vivia-se sob a recente vigência de uma
constituição nova, marcada pelo compromisso com a democracia e a justiça
social, parecia mesmo que aos juristas incumbia uma parte importante do
processo histórico nacional, qual seja, o de dar uma contribuição decisiva no
processo de redemocratização rumo a uma plena consolidação democrática no
Brasil. Reformar as leis, fortalecer as instituições jurídico-políticas,
desenvolver aqui – de modo inédito - uma cultura de respeito aos direitos humanos
e à democracia mais plena e efetiva.
De início, os juristas mais
engajados com os novos tempos se organizaram em movimento – do direito
alternativo – e procederam a uma importante crítica da cultura jurídica então
vigente no país, em grande medida dominada por uma inércia do pensar derivada
dos anos em que vivemos sob o comando de generais-presidentes. Foram tempos em
que se denunciou a falsa neutralidade do direito e do Estado e se propugnou por
um compromisso dos juristas progressistas com a supremacia da nova
constituição.
Em seguida, buscou-se alhures
teorias do direito que pudessem ajudar nesta tarefa e ocorreu uma verdadeira
transposição teórica extremamente artificial cujos resultados em parte hoje
colhemos com certo desalento. O próprio problema do direito brasileiro foi
posto nos termos dos autores que logo ficaram em evidência, primeiro nos
programas de mestrado e doutorado, em seguida na doutrina jurídica, na
jurisprudência e, por fim, chegou-se mesmo até a legislação processual civil.
Nesta narrativa tratava-se de enfrentar a herança do positivismo jurídico – em
claro mimetismo com o que sucedeu na Europa do pós-Guerra, o regime militar
fazendo as vezes do regime nazista – e buscar a redenção definitiva da Nação no
labor exclusivo dos juristas, os únicos seres aptos a reconectar direito e
moralidade em especial por meio de um
“adequado” manuseio dos princípios jurídicos. Princípios, ponderação,
razoabilidade, proporcionalidade, “resposta certa”, estes termos invadiram a
teoria do direito brasileira a partir de meados dos anos noventa do século
passado e parecem ter se instalado de modo definitivo. Obras de autores como
Ronald Dworkin e Robert Alexy foram recepcionadas no país de modo atabalhoado e
logo passaram a integrar plenamente o senso comum teórico dos juristas.[1] Há
quem já fale com desenvoltura sobre uma “americanização” [sic]do direito brasileiro.
Concomitantemente à importação de
teorias ditas pós-positivistas o país passou por uma série de inovações
legislativas com forte impacto no desenho das instituições jurídico-políticas,
a começar pela Emenda Constitucional nº 45, conhecida como a Reforma do
Judiciário. Estas inovações – a última delas é o Código de Processo Civil, em
2015 – todas trouxeram mudanças no sentido de fortalecer as instâncias
superiores do Poder Judiciário, dotando-o também de uma unidade de ação antes
desconhecida entre nós. A junção de uma teoria legitimadora da função dos
juízes com reformas institucionais constantes no sentido de atribuir mais poder
e unidade ao Poder Judiciário legou-nos um quadro disfuncional em que viceja
uma verdadeira hipertrofia do Poder Judiciário no concerto dos poderes da
República.
Este agigantamento do Judiciário,
longe de nos trazer a consolidação democrática e o império da Constituição,
culminou, no trágico biênio 2015-2016 com o lamentável papel desempenhado por
este na gravíssima crise política que levou à destituição da Presidenta da
República em agosto de 2016. Todos os princípios, ponderações e boas intenções
de fachada dos juristas não foram suficientes para esconder o papel ativo[2]
que o Judiciário brasileiro teve no processo de utilização ad hoc do instituto do impeachment
como mecanismo de mero voto de desconfiança de Dilma Rousseff. Melancólico, por
sinal, que neste processo infame tenha participado o Guardião da Constituição
com denodo e sem pejo de sacrificar até mesmo cláusulas pétreas, como no
episódio em que, para acelerar as delações premiadas no contexto da operação
“lava jato” (verdadeira constituição da República, na prática, nestes dias)
houve por bem de autorizar as execuções provisórias em ações criminais,
atropelando o princípio da presunção de inocência, um dos pilares do direito de
nações tidas como civilizadas.
O momento na teoria do direito no Brasil é de proceder a uma intensa
autocrítica. A defesa de um modelo institucional que colocou os juristas em
lugar mais importante – um lugar mítico - que o do cidadão comum conduziu o
país para longe da democracia e do Estado de Direito. A Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 trazia consigo um esforço compromissário a ser
desenvolvido com o passar dos anos de combinar a legitimação democrática – até
mesmo com mecanismos robustos de democracia direta e participativa – com
proteção das minorias por meio de direitos fundamentais. Com o tempo, os
juristas, ávidos de poder, produziram um discurso que transmutou este
compromisso em dicotomia, o governo da maioria de um lado contra a vigência dos
direitos fundamentais de outro, e não são poucos os que ainda enchem a boca
para falar em “justiça contramajoritária” com este tom claramente elitista.
A tarefa urgente de uma teoria do
direito brasileira na atualidade é a de recuperar o discurso original da Carta
de 1988, retirando das mãos gulosas dos juristas a pretensão de serem os únicos
portadores da juridicidade, evidenciando que em uma sociedade o direito não se
restringe a uma ciência de oráculos com capas pretas e seu jargão
incompreensível – e pedante -, mas é obra também de todos os cidadãos que convivem
na República Democrática, resultado não de um saber mitificado mas das lutas
sociais cotidianas e perenes. O grande desafio não é o de extrair de fórmulas
linguísticas ultra genéricas e abstratas a resposta certa segundo os
especialistas, mas o de fortalecer os mecanismos democráticos de construção do
direito a partir das lutas sociais, no âmbito do Estado e para além dele[3].
Estes estudos aqui registrados,
voltados aos alunos da graduação em direito, pretendem ser mais uma
contribuição neste sentido. Para isto, fogem de rótulos simplistas que
pretendem explicar o direito a partir de reducionismos grosseiros e revisitam
autores importantes na evolução recente do pensamento jurídico. Com Hans Kelsen
querem dar conta das dimensões sintáticas e semânticas do fenômeno jurídico e enfatizar
a politicidade do direito, mesmo nas sentenças e acórdãos do Judiciário, e
ressaltar o compromisso deste autor quanto à legitimidade do direito quando se configura
na forma democrática. Penso que Kelsen nos serve de antídoto contra a tentação
do neojusnaturalismo e suas intenções pouco veladas de sequestrar a democracia
em nome do Estado de Direito, que leva fatalmente a uma concentração ainda
maior do poder na mão de grupos e corporações instaladas no Estado,
afastando-nos cada vez mais de um projeto democrático popular. Com Perelman
buscam iluminar o aspecto pragmático do direito, espaço de elaboração de
discursos em que predomina uma racionalidade argumentativa. Por fim, buscam no
pluralismo jurídico ampliar a compreensão do fenômeno jurídico na
contemporaneidade, na medida em que nem o direito nem a democracia que temos e
queremos cabe mais no apertado conceito de direito estatal que, não obstante,
ainda subsiste com declinante centralidade. Um segundo volume, voltado a
analisar as elaborações teóricas mais recentes denominadas amplamente como “pós
positivistas”, deverá se juntar brevemente a este primeiro texto.
Este livro sintetiza, de alguma
maneira, muito do que tenho pensado sobre o direito nestes últimos vinte anos
de docência. Foram anos de muita interlocução e construção coletiva de saberes.
Não posso deixar aqui de agradecer aos meus professores, em especial Leonel
Severo Rocha, Antonio Carlos Wolkmer e Lédio Rosa de Andrade. Neste período
convivi com muitos amigos juristas especiais, que muito contribuíram para
minhas reflexões sobre o direito e minha construção pessoal como professor. Sou
especialmente grato a Sergio Graziano, David Sanches, Gaetano Pecora, Dilvânio
de Souza, Clélia Fontanela, Cecilia Caballero, Daniel Torres de Cerqueira, Rogerio
Dultra, Douglas Leite, Vladimir Luz e Gustavo Pedrollo. Devo muito também à
convivência com os milhares de alunos de direito que passaram por mim em todos
estes anos, a quem agradeço na pessoa de três ex-alunos que se tornaram bons
amigos: Tiago Gomes Fernandes, Eduardo Messaggi Dias e Daniel Thiago Otherback.
Niterói, abril de 2017.
O Autor
[1]
Conceito fundamental do saudoso professor Luiz Alberto Warat.
[2] O judiciário, em todas as instâncias, foi
decisivo fomentador da destituição da Presidenta, por meio de diversos modos,
mais ou menos explícitos. Apenas alguns exemplos: abuso seletivo de prisões
processuais, muitas vezes agendadas para datas próximas de eleições gerais;
vazamento seletivo de conversas telefônicas interceptadas; ausência de resposta
a pedidos de prisão de autoridades durante meses; decisão em segunda instância
que autoriza o juízo de primeira instância a tomar medidas excepcionais em
contextos tidos como excepcionais; uso matreiro de conteúdos de delações para
gerar resultados extraprocessuais em articulação com setores principais da
mídia de abrangência nacional.
[3] “Um sistema jurídico que confere a
autoridade final a uma
assembléia de centenas de representantes - e que o faz como uma forma de expressar
princípios de soberania popular, autogoverno e democratica
auto-determinação - pode exigir um tipo diferente de
ciencia do direito do que é apropriado para um sistema dominado por
éditos de um único legislador racional.” Em: WALDROM, Jeremy. The dignity of legislation. Mariland Law Review. Volume 54. Issue 2. Article 12. 1995.p. 665.
assembléia de centenas de representantes - e que o faz como uma forma de expressar
princípios de soberania popular, autogoverno e democratica
auto-determinação - pode exigir um tipo diferente de
ciencia do direito do que é apropriado para um sistema dominado por
éditos de um único legislador racional.” Em: WALDROM, Jeremy. The dignity of legislation. Mariland Law Review. Volume 54. Issue 2. Article 12. 1995.p. 665.
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