Junho de 2013.
Multidões nas ruas do Brasil.
Era uma massa difusa, com reivindicações diversas e muitas vezes inconciliáveis.
O sentido das reivindicações de junho ainda não se consolidou; é claro que não estava dado, pois é processo histórico e está em pleno materializar-se, nos entrechoques de um processo que não se isenta de contradições.
Mas aquilo era algo.
A foto impressionante da multidão na avenida Presidente Vargas não nos permite negar sua faticidade. Havia algo que unia todos os ali presentes: sua insatisfação com o estado de coisas. Era uma insatisfação política. (felizmente meus piores temores se mostraram infundados, quando em 2014 tentaram puxar em 31 de março, uma marcha que emulava os idos de 1964. Os que em junho de 2013 queriam a volta da ditadura eram poucos, verdadeiramente uns poucos gatos pingados).
Ainda creio que o principal fator das manifestações de junho de 2013 é o fator geracional. (a geração, minha geração, que saiu da ditadura querendo fazer política - explodindo na campanha das diretas e se enquadrando na constituinte - e para isto construiu o que mais próximo o Brasil já viu de um partido político, o PT, vê adentrar sem aviso na sua "zona de conforto" a nova geração, carregada do mesmo ímpeto de contribuir com um processo cujos limites entende ser possível superar)
Ali, em junho de 2013, poderia ter estado o misterioso Poder Constituinte Originário.
A resposta da Presidência da República, inicialmente perplexa diante da evolução rápida dos acontecimentos, foi honrosa e democraticamente apropriada: convoquemos uma assembléia nacional constituinte exclusiva para uma reforma política, articulada com a aprovação por meio de um plebiscito.
Diante desta proposta, que daria um sentido impressionante aos eventos de junho, todo o setor conservador se recolheu, compreensivelmente. Uma coisa era chacoalhar a árvore do governo indesejado, outra bem diferente aprofundar de verdade processos democráticos.
A grande mídia, ela própria questionada duramente nas manifestações como integrante do "estado de coisas" a ser superado, logo dirigiu a energia da massa (que se orgulhava ingenuamente de não ter líderes e hostilizava partidos) para um objeto palpável, uma tal de PEC 37, identificada como a origem de todos os males, a PEC da impunidade. Ah se os brasileiros realmente conhecessem o Ministério Público... (mas isso é outra conversa)
O Congresso rejeitou a PEC 37 e as coisas voltaram, em seu aspecto exterior, à normalidade. O Governo não insistiu realmente numa assembléia constituinte. Mas o governo sabia muito bem que aquelas manifestações tinham sido as primeiras daquela dimensão na redemocratização que tinham ocorrido sem a organização/articulação/participação do PT. Que seria de 2014?
O PT vacilou. vacilou como só um partido de esquerda no governo pode vacilar, dividido, no exercício da virtú, sem saber se a continuidade do seu empoderamento dependerá mais de aprofundar/radicalizar seu projeto idiossincrático ou de fazer concessões e se mostrar um leão de unhas aparadas, que no fundo não ameaça as bases em que sustenta o pacto político no Brasil. O decreto da PNPS faz parte deste vacilo, na forma em que se apresentou no cenário político.
A Copa do mundo passou e não influenciou em nada o processo político. Poderia ter ocorrido algo e as medidas governamentais foram do tamanho da ameaça de desestabilização (do Estado e do Governo, e penso aqui em especial nas intervenções repletas de ilegalidades em favelas e nas prisoes ilegais de líderes de manifestantes (ora, não eram movimentos horizontais?)). Mas, os grupos antissistema se reduziram a um número mínimo, incapazes de propor algo no cenário político complexo. O que apenas evidencia a dimensão impressionante das marchas de junho de 2013...
O processo eleitoral oficial começa. Quase uma dezena de candidatos, de diversas ideologias políticas, desde a direita até a esquerda revolucionária. Cenário morno. Dilma estava para levar a eleição no primeiro turno. Os eleitores não viam nos candidatos de oposição a expressão de uma alternativa real.
Eis que um avião cai em Santos. Marina Silva, a ex-petista sem partido (apenas provisoriamente abrigada no PSB), experimenta o que é cair nos braços da Fortuna. Não vacila um instante. O que vemos hoje é que estava preparadíssima para o seu desafio. Tem virtú. Mais que isso, tem carisma, o que falta a todos os demais candidatos neste pleito.
Hoje Marina está na frente das pesquisas. Seu crescimento é consistente. O principal motivo é que ela, a sua figura, conseguiu capturar em grande medida a energia que fluiu nas manifestações de junho de 2013. Ela estava com o discurso pronto, o do novo, da mudança "verdadeira", da superação de 20 anos da polarização PT-PSDB. Ela tinha o ethos certo para encarnar retoricamente este discurso. É frágil, humilde, "não se ajustou" nos partidos políticos tradicionais. O não-registro da sua rede (uma prova de sua incapacidade política efetiva) em sua figura atual se torna um trunfo, evidenciando sua inadaptação ao sistema político vigente (que se quer superar). E ela não tem somente o discurso. Como selou o pacto com as elites conservadores ligadas ao setor financeiro, ela tem estrutura para a campanha. Então ela tem carisma, discurso "certo" e estrutura. É uma fórmula decisiva.
A candidatura Marina captura a energia que estava flutuando por aí e parecia adormecida. Energia que o PT tenta apreender nesta semana da pátria, com a estratégia dos tempos em que era oposição, o plebiscito da reforma política. Uma excelente e racional estratégia política democrática. Se milhões forem os que votarem no plebiscito, a expressão constituinte dos idos de junho de 2013 terão encontrado um canal de direcionamento produtivo e de invenção democrática, apto de fato a impulsionar um redesenho institucional que radicalize nossas estruturas democráticas vigentes.
Mas, e se não forem milhões a votar no plebiscito? E se a vacilação tiver feito passar o tempo da racionalidade, superado irreversivelmente pelo irracionalismo do Carisma?
Quanto tempo leva para se perceber que uma gramática política (fundada na falsa ideia do ganha-ganha e no "bode-na-sala") que funcionou por 12 anos pode ter parado de funcionar?
Pontos que estão no ar, esperando por eventos que lhe darão o sentido definitivo.
P.S.: Não tenho a menor dúvida de que, se ganhar a eleição, a vitória de Marina Silva ilustrará mais uma vez a fala do sobrinho (Tancredi) do personagem principal do livro "O Leopardo", de Lampedusa, algo como: "é preciso que tudo mude para que continue como está". No contexto em que sua candidatura se construiu vertiginosamente a partir de um evento fortuito, Marina é a maior aventureira do pós-ditadura militar.
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