No dia 21 de junho a Presidente
da República fez pronunciamento à Nação, em decorrência das manifestações que
ocorriam e ainda ocorrem por todo o país. Foi um discurso correto. Ela nem
derrapou (lembrem-se de Collor, que em uma fala desastrada incendiou o país
contra si próprio), nem surpreendeu.
Mas
foi uma fala frustrante, em especial porque a retórica tem seus limites: o
momento exige ação política em diversos níveis.
Nesta
segunda-feira, 24 de junho, Dilma voltou à cena. Após simbolicamente se reunir
com o MPL e com governadores e prefeitos de capitais, apresentou cinco pactos
nacionais, relacionados com as esferas fiscal, política, saúde, educação e
transportes. Desta vez sua fala não foi apenas um discurso, mas ação política
concreta. Dos cinco pactos, o mais decisivo e impactante é o político,
consistente em uma proposta de reforma constitucional específica atrelada a um
plebiscito no início e um referendo ao final (foi o que eu entendi, precisamos
ver a proposta no papel).
Uma
observação importante: o quadro político do momento é de crescente tensionamento
das forças em disputa. Neste sentido, qualquer proposta de Dilma, que não fosse
a sua renúncia, seria mal recebida pelos setores críticos ao governo. Se apenas
fossem encaminhados projetos de lei ou novas PEC’s, seria dito que estas já
abundam Congresso Nacional. Se a constituinte fosse plenipotenciária e não
específica, seria criticada como tentativa de subverter a ordem constitucional
(mexeria também na ordem econômica, na regulação da mídia, em tudo). Se não se
falasse em consulta popular, seria criticada por não ouvir o povo nas ruas,
deixando as mudanças a cargo dos sarneys e renans (tão odiados quanto votados
cotidianamente por este povo que hoje grita nas ruas por ética).
Ao
propor uma constituinte exclusiva, Dilma ao menos busca dar uma resposta a alguns
pontos concretos que estas manifestações tão heterogêneas têm levantado: a
afirmação presente na insatisfação popular com as mazelas do sistema
representativo e o desejo de mudar o que está aí com a participação desta mesma
população. Neste sentido, a sinalização de mudanças constitucionais articuladas
com a consulta popular atinge em cheio estas demandas: (1) muitos pontos
importantes de uma reforma política (não todos) necessitam de alterações no
texto constitucional; (2) a consulta popular é o meio possível de os cidadãos
pressionarem o Legislativo no sentido de fazerem a reforma desejada, muitas
vezes contrariando os interesses diretos dos atuais deputados federais e
senadores.
Quero
reafirmar minha opinião sobre o sistema político constitucional atualmente
vigente no país. Ao meu sentir, a CRFB é instrumento avançado de implementação
de um regime democrático. Primeiro pela sua origem, marcada pela ampla
participação em sua produção dos
diversos setores da vida da nação que se redemocratizava após os anos escuros
da ditadura. Segundo, por conter mecanismos avançados de participação popular,
não se exaurindo na formatação de uma democracia representativa. Assim, temos
lá o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, replicados em âmbito
estadual e municipal. Ela é, na verdade, o marco jurídico de uma democracia
participativa, como o confirmam leis infraconstitucionais que instauraram conselhos
de direitos os mais diversos, determinando a participação direta dos membros da
comunidade em processos importantes para a vida social como é o caso do
estatuto das cidades e a elaboração dos planos diretores dos municípios.
Mas
as manifestações, dentre as muitas e contraditórias coisas que apontam, indicam
que a população quer mais. E a análise perfunctória do texto constitucional
indica que é possível promover alterações que possam se revelar avanços. Por
que não discutir o voto obrigatório, o sistema eleitoral proporcional, a
existência dos suplentes de senadores, só para citar alguns exemplos? Por que
não limitar o número de mandatos consecutivos de deputados e senadores,
evitando a profissionalização e oxigenando o sistema político? Voto aberto ou
em lista? Por que não vincular o processo legislativo em alguns temas vitais
para a cidadania à realização de consultas populares? (com a devida observação
de que já sabemos bem que democracia não é apenas atenção ao princípio
majoritário, mas a soma de vontade da maioria com respeito aos direitos
fundamentais, aí o papel fundamental da nossa corte constitucional, sempre
imprescindível)
Ainda
não temos conhecimento da proposta concreta do governo federal. Em virtude
disso, qualquer avaliação da proposta neste momento é feita apenas em tese, sem
endossar futuras elaborações da equipe de Dilma. Mas a ideia da constituinte
pode ser sim interessante, pois a aprovação por PEC (aliás, origem da atual
CRFB/88, ver emenda nº 26) deste processo poderia facilitar o encaminhamento
dos temas, já que uma constituinte deverá ter procedimento de votação mais
facilitado, imagina-se que em reunião unicameral e por maioria absoluta. Isto pode
desatar alguns importantes nós. Uma proposta como esta seria despropositada se
não tivéssemos vivenciado as manifestações que ora vivenciamos. Diante do
desafio de vida e morte para o sistema político e o governo, a resposta de
Dilma, agora sim, foi à altura das pretensões e aspirações populares.
Pergunta-se: e os governadores estaduais e prefeitos, que dirão e farão a
respeito? E o Legislativo e Judiciário, igualmente alvo de muitas das críticas
contidas nestes protestos?
Mais
importante, com a saída das autoridades da catatonia inicial, pode-se passar da
fase caótica instalada por este evento imprevisível e impressionante, para a
discussão racional de pautas a serem enfrentadas com os mecanismos
institucionais vigentes e legítimos da CRFB. Se já entramos no debate sobre as
medidas do governo discutindo-as a partir do código “constitucional”/”inconstitucional”,
já é um excelente sinal, pois o sistema jurídico já começa a processar a complexidade
infinita manifestada nas ruas.
Salvo,
é claro, para aqueles que, inseridos no processo, não viram nada de interesse além
da possibilidade de abalar a hegemonia governista sólida e democraticamente constituída,
ainda que ao custo de arrastar junto nossa democracia em construção. Democracia
que, agora, tem uma chance concreta de se reinventar.
P.S.: uma ressalva ao que foi proposto por Dilma ontem. Não concordo justamente com aquilo que deverá receber aplauso geral: corrupção como crime hediondo. Minha leitura crítica do sistema penal não me permite endossar esta medida. Mas, se for para sair deste atoleiro, vá lá que os corruptos sejam um pouco atingidos.
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