São Fco.

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Literatura liberta. Literalmente!



Notícia no G1 informa que o Estado do Ceará encaminhou projeto de lei para regulamentar dispositivo da Lei de Execução Penal que estendeu a remição da pena também para o preso que se dedique às atividades de estudo. No texto jornalístico, é informado que a leitura de 12 obras literárias poderá remir 48 dias de prisão dos condenados, desde que sejam aprovados no crivo de uma "comissão de remição da pena pela leitura" designada para tal tarefa. Isto já existe em outros lugares do país.

Minha primeira impressão sobre o tema é de aprovação. Minhas leituras de criminologia crítica me levam sempre a compreender que toda medida que provoque menos encarceramento é, em regra, bem-vinda. Mas tenho que confessar que minha experiência no campo educacional e uma vivência em especial na pós-graduação lato sensu, me levam a refletir sobre a viabilidade pra valer desta proposta. Eu chamo este episódio de "o dia em que eu dei nota 9,5 para o Celso Lafer".

Há mais de dez anos eu lecionei disciplina de teoria do direito numa turma de especialização em uma fundação educacional em Santa Catarina. Nesta turma, três circunspectos delegados de polícia da região. Ao final da disciplina, encaminhei a avaliação como de costume, a entrega de ficha de leitura de um livro do italiano Norberto Bobbio. Com as fichas em mãos, passei á correção. Os trabalhos seguiam de regulares a bons, até que uma das fichas me chamou a atenção. Era um ótimo texto; na verdade o texto era perfeito. Em linguagem fluente, o autor não apenas resumia a obra do mestre de Turim, mas o contextualizava dentro de sua biografia e da evolução da teoria do direito positivista em que se inseria.

Fiquei num rápido dilema: procuro no "google" para ver se é plágio ou não? Decidi dar um voto de confiança ao aluno-delegado e segui em frente nas correções, atribuindo-lhe nota 9,5.

Qual não foi minha surpresa quando deparei-me, em seguida, com uma ficha-resumo em tudo igual á anterior! Bom, chegara a hora de deixar os pudores pedagógicos de lado e ir ao google ver de onde saíra aquele ótimo texto. Tratava-se de uma resenha de ninguém mais, ninguém menos que Celso Lafer, então ministro de Relações exteriores de FHC! Era a ficha do outro delegado, e logo fui atrás do colega faltante, igualmente "inspirado" no embaixador brasileiro. Que fazer? Zero pra todo mundo, é claro.

Mas, como educação e negócios não rimam mesmo, lá vem a direção da instituição, apelar para que eu relevasse o plágio descarado dos chefes de polícia e oferecesse uma nova oportunidade. Contrariado e após muitos apelos, indiquei nova ficha de leitura, de um texto três vezes maior, em castelhano, sobre teoria dos sistemas. Livro recente, para que não pudessem achar tão facilmente uma resenha à mão para cometerem novo ilícito na minha cara.

Passados alguns dias, três resenhas novas em minhas mãos, uma diferente da outra, sobre o livro de Pedro Nava. Nota para todos, episódio a ser superado.

Dois anos depois, numa conversa informal com um ex-aluno, fico sabendo de um novo dado do episódio: os delegados encomendaram com este ex-aluno a feitura das fichas de leitura!

Conto este episódio pois ele se relaciona de alguma forma com a notícia da remição pela leitura. É sensacional que os presos possam ler nas prisões, é mesmo incrível que a um tempo se libertem dos grilhões físicos bem reais das masmorras brasileiras e também tenham a oportunidade de libertar sua mente por meio do grande ganho que terão com as leituras que farão (espero que tenham acesso a uma boa literatura: quem formará a biblioteca? Já pensou ter que ler apenas Paulo Coelho? Punido duas vezes? Maus tratos? hehe).

Mas vejam que sociedade a nossa... Suponhamos que meus alunos-delegados tenham feito o que fizeram (plágio) por falta de tempo para os estudos. Não problematizemos este aspecto. Então, temos delegados tão ocupados prendendo gente que não têm tempo para leitura e trabalhos acadêmicos. Por outro lado, os presos que tiram o tempo destes delegados vão ter tempo e valorização da atividade da leitura depois de encarcerados, numa situação que parece paradoxal.

 Mas, apenas parece paradoxal. Os delegados não deixaram de fazer a ficha por falta de tempo, mas dentre outras coisas pela falta de compromisso com sua formação acadêmica, a especialização sendo vista como apenas uma forma de pegar um certificado para progredir no plano de carreira. (aliás, tempos depois, alguém percebeu esta demanda na região e montou uma nova empresa de ensino com cursos praticamente de fachada, em que professores faziam que lecionavam e alunos fingiam que estudavam. Deu em muitos processos tramitando no judiciário.)

Vou torcer para que os presos realmente leiam seus livros, abrindo sua mente para todo o universo que a literatura proporciona a todo aquele que tem a oportunidade de se dedicar a ela, como a outras artes.

A moral desta história, se é que tem alguma, é apenas a de ilustrar o mecanismo de seletividade inerente ao sistema penal. Mecanismo que explicita seu funcionamento político direcionado a segmentos politicamente escolhidos, pois, como já o mostrou Machado de Assis n'O Alienista, se apertar o critério vai todo mundo pro xadrez!


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