São Fco.

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segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Fidelixação da política

Escrevo logo após o debate presidencial ocorrido na rede Record de televisão. Num debate em que candidatos inexpressivos eleitoralmente (detesto a expressão "nanicos") participam e acabam atrapalhando o debate que importa, entre os postulantes para valer mesmo, brilhou negativamente já na madrugada desta segunda-feira o candidato perpétuo do aerotrem, Levy Fidelix.

Perguntado pela candidata do Psol, Fidélix discorreu um rosário de estultices sobre a homossexualidade, valendo-se de expressões escatológicas que não fariam feio numa mesa de bar em que o estado etílico dos candidatos a machões já recomendasse a incidência da fiscalização dos funcionários da "lei seca".

Estes candidatos folclóricos depõem contra o processo democrático, ao tempo em que paradoxalmente atestam sua vitalidade. Se por um lado mostram que não é difícil ser candidato nas eleições brasileiras, parece bastar querer, por outra perspectiva o eleitor se impacienta com a perda de tempo de escutar pessoas cujo nível de conhecimento (não confundir com educação formal) e seriedade deixam muito, mas muito a desejar.

O eleitor deve ter calma. O fato é que a campanha realmente parece estar congestionada destes candidatos, cuja mensagem às vezes não passa de uma rima ou de uma feliz combinação de números. Isso é um efeito perverso de nosso sistema eleitoral, que é o proporcional (bom sistema) de lista aberta (aspecto ruim). A adoção da lista fechada acabará por decreto com este festival de figuras assustadoras/ridículas nas eleições proporcionais para os parlamentos.

Mas a história mostra que o eleitor depura tudo isto. No final das contas, a maioria dos que são eleitos são pessoas preparadas, com capacidade intelectual (de novo, não confundir com educação formal) e política de encarar as missões para as quais foram escolhidos. Se há candidatos terríveis no pleito, também há candidatos excelentes, que merecem toda a nossa atenção e voto.

Aqui no Rio de Janeiro eu não teria a menor dificuldade de definir meus votos. Há candidatos para os quais torço realmente para que consigam sua vaga no próximo domingo. Veja os casos do Wadih Damous (PT) e do Jean Willys (Psol). São candidatos em que se pode votar com segurança.

Em Santa Catarina, por exemplo, olhe o rol dos candidatos ao Senado: Paulo Bornhausen (agora na versão marino-socialista), Milton Mendes de Oliveira e Dario Berger. Você pode dizer muita coisa deles, discordar radicalmente como discordo de P.B., mas é um fato salutar que se trata de um grupo de políticos preparados e de trajetória consistente, seja pela direita, seja pela esquerda.

Voltando ao infeliz Fidelix, é fato que esta figura já deveria ter perdido sua oportunidade de nos aporrinhar. Em 1995, o Congresso nacional aprovou a Lei nº 9096/95, que dentre outras coisas estabeleceu a cláusula de desempenho para o funcionamento dos partidos políticos no Brasil.

Medida mais que salutar, ela deveria ter entrado em vigor nas eleições de 2006 e isso não ocorreu devido ao STF, que considerou esta medida inconstitucional. Que oportunidade perdida de consolidar nosso quadro partidário! Quando lembrarem do Fidélix em 2018 (ele já disse que concorrerá!), lembrem também do egrégio STF...

sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Plebiscito popular constituinte e reforma política

Saíram os resultados da apuração do plebiscito sobre a constituinte da reforma política.
Segundo as diversas entidades que organizaram esta importante iniciativa democrática, votaram na consulta popular informal um total de 7.754.436 pessoas.

O que se pode dizer deste número? É expressivo? Atingiu o objetivo esperado ou não?

Quase oito milhões de pessoas é muita gente. Considerando que o plebiscito foi claramente boicotado pelos meios de comunicação tradicionais, o número de votantes obtido se afigura como uma vitória para seus organizadores.

Mas para tentar avaliar em cima de algo mais concreto, fui atrás do último plebiscito deste tipo ocorrido no Brasil. Trata-se do plebiscito sobre a ALCA, realizado na semana da pátria do ano de 2002. Naquele derradeiro ano do governo FHC, o debate sobre a adesão do Br
asil à ALCA era a pauta do momento, o país precisando decidir se atrelaria seus destinos definitivamente aos EUA ou se trilharia um caminho de autonomia em sua política externa (só esta lembrança já nos faz ver que os últimos doze anos valeram a pena, quando comparamos o destino do México, que aderiu ao NAFTA, com o do Brasil, que avança dentro dos marcos de uma diplomacia independente, mantendo MERCOSUL e experimentando nos BRICS).

Naquele plebiscito, então, foram 10.149.542 os votantes. Um número maior portanto, do que o obtido no plebiscito mais recente. Se pensarmos que houve aumento populacional nestes 12 anos e que a última consulta inovou com a coleta de votos na internet, os quase oito milhões ficam evidentemente um pouco menores.

Mas ainda assim é muita coisa. A consulta popular foi uma tentativa adequada e democrática de tentar dar vazão aos anseios dos eventos excepcionais de junho de 2013. Aquele povo todo na rua queria algo. EStava insatisfeito com algo e diante do quadro de estabilidade econômica e social que parece consolidado no país a pista mais consistente aponta para uma insatisfação com o sistema político.

Parece haver um consenso bastante abrangente sobre a necessidade de uma reforma política no país. É importante que se tenha em mente que em muitos aspectos nossas instituições jurídico-políticas são muito avançadas. O quadro institucional brasileiro aponta para uma democracia representativa combinada com instrumentos de democracia direta. Além disso, diversos são os dispositivos legais vigentes que instauram a democracia participativa em múltiplas instâncias da vida social brasileira.

Mas, é claro que é possível avançar. São muitas as propostas levantadas que poderiam fazer melhorar significativamente nossas instituições e a sociedade. É preciso estar atento para que a reforma vindoura seja para ampliar direitos, não para restringi-los.

Quem é contra os avanços sociais e não tem interesse na ampliação do poder popular certamente tentará minimizar o vulto das manifestações de junho de 2013 e os resultados do plebiscito popular constituinte. O fato, porém, é que estes dois eventos conjugados são fatos de imensa magnitude, mormente quando comparados a outros momentos da história nacional que foram considerados aptos a parir novas constituições.

Apenas para ilustrar literariamente um desses momentos, trago aqui o depoimento de um personagem de Machado de Assis, em seu livro "Esaú e Jacó":

"- Como diabo é que eles fizeram isto [proclamar a República em 15 de novembro de 1889], sem que ninguém desse pela cousa? refletia Paulo. Podia ter sido mais turbulento. Conspiração houve, decerto, mas uma barricada não faria mal."

Vamos "dar pela cousa" desta vez?   


quinta-feira, 4 de setembro de 2014

A energia política desperdiçada: Marina no poder

Junho de 2013.
Multidões nas ruas do Brasil.
Era uma massa difusa, com reivindicações diversas e muitas vezes inconciliáveis.
O sentido das reivindicações de junho ainda não se consolidou; é claro que não estava dado, pois é processo histórico e está em pleno materializar-se, nos entrechoques de um processo que não se isenta de contradições.
Mas aquilo era algo.
A foto impressionante da multidão na avenida Presidente Vargas não nos permite negar sua faticidade. Havia algo que unia todos os ali presentes: sua insatisfação com o estado de coisas. Era uma insatisfação política. (felizmente meus piores temores se mostraram infundados, quando em 2014 tentaram puxar em 31 de março, uma marcha que emulava os idos de 1964. Os que em junho de 2013 queriam a volta da ditadura eram poucos, verdadeiramente uns poucos gatos pingados).
Ainda creio que o principal fator das manifestações de junho de 2013 é o fator geracional. (a geração, minha geração, que saiu da ditadura querendo fazer política - explodindo na campanha das diretas e se enquadrando na constituinte - e para isto construiu o que mais próximo o Brasil já viu de um partido político, o PT, vê adentrar sem aviso na sua "zona de conforto" a nova geração, carregada do mesmo ímpeto de contribuir com um processo cujos limites entende ser possível superar)

Ali, em junho de 2013, poderia ter estado o misterioso Poder Constituinte Originário.

A resposta da Presidência da República, inicialmente perplexa diante da evolução rápida dos acontecimentos, foi honrosa e democraticamente apropriada: convoquemos uma assembléia nacional constituinte exclusiva para uma reforma política, articulada com a aprovação por meio de um plebiscito.

Diante desta proposta, que daria um sentido impressionante aos eventos de junho, todo o setor conservador se recolheu, compreensivelmente. Uma coisa era chacoalhar a árvore do governo indesejado, outra bem diferente aprofundar de verdade processos democráticos.

A grande mídia, ela própria questionada duramente nas manifestações como integrante do "estado de coisas" a ser superado, logo dirigiu a energia da massa (que se orgulhava ingenuamente de não ter líderes e hostilizava partidos) para um objeto palpável, uma tal de PEC 37, identificada como a origem de todos os males, a PEC da impunidade. Ah se os brasileiros realmente conhecessem o Ministério Público... (mas isso é outra conversa)

O Congresso rejeitou a PEC 37 e as coisas voltaram, em seu aspecto exterior, à normalidade. O Governo não insistiu realmente numa assembléia constituinte. Mas o governo sabia muito bem que aquelas manifestações tinham sido as primeiras daquela dimensão na redemocratização que tinham ocorrido sem a organização/articulação/participação do PT. Que seria de 2014?

O PT vacilou. vacilou como só um partido de esquerda no governo pode vacilar, dividido, no exercício da virtú, sem saber se a continuidade do seu empoderamento dependerá mais de aprofundar/radicalizar seu projeto idiossincrático ou de fazer concessões e se mostrar um leão de unhas aparadas, que no fundo não ameaça as bases em que sustenta o pacto político no Brasil. O decreto da PNPS faz parte deste vacilo, na forma em que se apresentou no cenário político.

A Copa do mundo passou e não influenciou em nada o processo político. Poderia ter ocorrido algo e as medidas governamentais foram do tamanho da ameaça de desestabilização (do Estado e do Governo, e penso aqui em especial nas intervenções repletas de ilegalidades em favelas e nas prisoes ilegais de líderes de manifestantes (ora, não eram movimentos horizontais?)). Mas, os grupos antissistema se reduziram a um número mínimo, incapazes de propor algo no cenário político complexo. O que apenas evidencia a dimensão impressionante das marchas de junho de 2013...

O processo eleitoral oficial começa. Quase uma dezena de candidatos, de diversas ideologias políticas, desde a direita até a esquerda revolucionária. Cenário morno. Dilma estava para levar a eleição no primeiro turno. Os eleitores não viam nos candidatos de oposição a expressão de uma alternativa real.

Eis que um avião cai em Santos. Marina Silva, a ex-petista sem partido (apenas provisoriamente abrigada no PSB), experimenta o que é cair nos braços da Fortuna. Não vacila um instante. O que vemos hoje é que estava preparadíssima para o seu desafio. Tem virtú. Mais que isso, tem carisma, o que falta a todos os demais candidatos neste pleito.

Hoje Marina está na frente das pesquisas. Seu crescimento é consistente. O principal motivo é que ela, a sua figura, conseguiu capturar em grande medida a energia que fluiu nas manifestações de junho de 2013. Ela estava com o discurso pronto, o do novo, da mudança "verdadeira", da superação de 20 anos da polarização PT-PSDB. Ela tinha o ethos certo para encarnar retoricamente este discurso. É frágil, humilde, "não se ajustou" nos partidos políticos tradicionais. O não-registro da sua rede (uma prova de sua incapacidade política efetiva) em sua figura atual se torna um trunfo, evidenciando sua inadaptação ao sistema político vigente (que se quer superar). E ela não tem somente o discurso. Como selou o pacto com as elites conservadores ligadas ao setor financeiro, ela tem estrutura para a campanha. Então ela tem carisma, discurso "certo" e estrutura. É uma fórmula decisiva.

A candidatura Marina captura a energia que estava flutuando por aí e parecia adormecida. Energia que o PT tenta apreender nesta semana da pátria, com a estratégia dos tempos em que era oposição, o plebiscito da reforma política. Uma excelente  e racional estratégia política democrática. Se milhões forem os que votarem no plebiscito, a expressão constituinte dos idos de junho de 2013 terão encontrado um canal de direcionamento produtivo e de invenção democrática, apto de fato a impulsionar um redesenho institucional que radicalize nossas estruturas democráticas vigentes.

Mas, e se não forem milhões a votar no plebiscito? E se a vacilação tiver feito passar o tempo da racionalidade, superado irreversivelmente pelo irracionalismo do Carisma?

Quanto tempo leva para se perceber que uma gramática política (fundada na falsa ideia do ganha-ganha e no "bode-na-sala") que funcionou por 12 anos pode ter parado de funcionar?

Pontos que estão no ar, esperando por eventos que lhe darão o sentido definitivo.

P.S.: Não tenho a menor dúvida de que, se ganhar a eleição, a vitória de Marina Silva ilustrará mais uma vez a fala do sobrinho (Tancredi) do personagem principal do livro "O Leopardo", de Lampedusa, algo como: "é preciso que tudo mude para que continue como está". No contexto em que sua candidatura se construiu vertiginosamente a partir de um evento fortuito, Marina é a maior aventureira do pós-ditadura militar.