São Fco.

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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Campeão de xadrez em Brusque!


Essa é uma história que eu tenho que contar.

Era o ano de 1989. Eu tinha então 17 anos, fazendo estágio obrigatório do curso técnico em desenho e projetos que cursava na escola técnica da SATC. Como a SATC era muito prestigiada (fato que comprovei na prática), eu poderia escolher fazer estágio em muitos lugares do país. Eu queria sair de casa e, para não ir assim tão longe, optei por um estágio de seis meses em uma metalúrgica de extrusão a frio situada em Guabiruba, cidade vizinha a Brusque-SC.

Guabiruba era uma cidade com pouco mais de 3 mil moradores, TODOS  descendentes de alemães e preservando seus hábitos e idioma. Não havia nada para fazer na cidade. Nada mesmo. Nem ir a um boteco, pois o povo teimava em conversar entre si em alemão e eu ficava naquela dúvida cruel: estarão a zombar de mim?

Diante da total ausência do que fazer comprei dois livros de Idel Becker, livros para aprender a jogar xadrez. Um para iniciantes e outro somente de aberturas de partidas. Passava eu boa parte do meu tempo de ócio a ler os livros e decifrar os diagramas, que reproduziam grandes partidas de grandes mestres do jogo de tabuleiro tido como o mais difícil e propunham também problemas a serem resolvidos pelo leitor-aprendiz.

Muitas destas partidas eram às vezes reproduzidas quase até o final, deixando para o leitor a tarefa de descobrir como terminava. Nestes casos, depois do último lance vinha a recorrente expressão: "mate em tantos lances". Posso dizer que estudei os dois livros a fundo, mas não tinha com quem jogar pessoalmente. Era pura teoria.

Até que, na empresa em que trabalhava, fui convidado para jogar alguma coisa nas olimpíadas do SESI. Prontamente me inscrevi no torneio de xadrez, a ser realizado em apenas um dia na cidade de Brusque.

Chegado o dia do torneio lá estava eu. Não conhecendo ninguém, quieto no meu canto, escutei os outros competidores (que nitidamente eram velhos conhecidos de outros torneios) zombarem do fato de haver alguém representando a metalúrgica de Guabiruba: "quem será o alemão que largou a roça pra vir aqui jogar xadrez com a gente? Quaquaquaqua!". Fiquei na minha; afinal, eu nunca jogara uma partida a sério com um outro ser humano! (bom lembrar que em 1989 não havia internet. Somente depois deste torneio que descobri - e me inscrevi - que existia um Clube de Xadrez Epistolar Brasileiro - CXEB, com torneios regulares jogados por carta! O lema do CXEB é "Leva o xadrez, traz o amigo!", mas esta é outra história...)

Começa o torneio. Era uma torneio de mata-mata, com uns 16 competidores. Quem ganha segue, quem perde sai. Meu primeiro adversário começa de brancas e sai com um P4TD. Tive que me segurar. É um lance ridículo, de quem só sabe movimentar as peças. Ganhei fácilmente em mais alguns lances.

A segunda partida foi mais equilibrada. Saí de brancas (P4R) e depois de muito jogar (era um torneio sem uso de relógio) dei um xeque-mate no adversário.

E assim seguiu até que eu cheguei na final.

Meu adversário era um senhor, deveria ter passado um pouco dos sessenta anos. Eu não conhecia ninguém, mas podia imaginar que ele devia ser bom, pois estava na final (tinha alguma dúvida disso, pois eu também estava na final e era meu primeiro torneio. Depois vim a saber que ele era do clube de xadrez de Brusque e tal...).

Jogamos demoradamente, com muitos ao redor da mesa observando o desenrolar da partida. A partida seguia numa tensão incrível, crescendo à medida em que meu adversário não conseguia me derrotar facilmente. Quem estava entre conhecidos era ele, eu estava ali de franco-atirador, zebra total.

Até que chegou um momento em que eu estudei longamente a posição do jogo e vi que o tinha ganho. Sim, o lance era meu e eu estava numa daquelas posições-problema do livro do Idel Becker em que, conforme eu fosse jogando, meu adversário somente poderia jogar lances específicos e únicos. Fiquei extremamente nervoso e conferi umas 20 vezes mentalmente se era aquilo mesmo. Depois de muito pensar, joguei minha peça e lasquei: "mate em seis lances!".

Meu adversário ficou controladamente furioso. Depois vim a descobrir que, de certa forma, eu cometera uma pequena gafe. Apesar de recorrente nos livros que ensinam a jogar xadrez, a expressão "mate em tantos lances" não deve ser proferida no contexto de jogo. Além do mais, imagina se não fosse? Foi um episódio de excesso de confiança e ausência de autocrítica, aceitável para minhas primeiras partidas a sério.

Depois de uns eternos 20 minutos a conferir a posição, o senhor a minha frente bufou e me estendeu a mão, tombando delicadamente o rei sobre o tabuleiro. Assim ganhei meu primeiro e único torneio de xadrez!

Literatura liberta. Literalmente!



Notícia no G1 informa que o Estado do Ceará encaminhou projeto de lei para regulamentar dispositivo da Lei de Execução Penal que estendeu a remição da pena também para o preso que se dedique às atividades de estudo. No texto jornalístico, é informado que a leitura de 12 obras literárias poderá remir 48 dias de prisão dos condenados, desde que sejam aprovados no crivo de uma "comissão de remição da pena pela leitura" designada para tal tarefa. Isto já existe em outros lugares do país.

Minha primeira impressão sobre o tema é de aprovação. Minhas leituras de criminologia crítica me levam sempre a compreender que toda medida que provoque menos encarceramento é, em regra, bem-vinda. Mas tenho que confessar que minha experiência no campo educacional e uma vivência em especial na pós-graduação lato sensu, me levam a refletir sobre a viabilidade pra valer desta proposta. Eu chamo este episódio de "o dia em que eu dei nota 9,5 para o Celso Lafer".

Há mais de dez anos eu lecionei disciplina de teoria do direito numa turma de especialização em uma fundação educacional em Santa Catarina. Nesta turma, três circunspectos delegados de polícia da região. Ao final da disciplina, encaminhei a avaliação como de costume, a entrega de ficha de leitura de um livro do italiano Norberto Bobbio. Com as fichas em mãos, passei á correção. Os trabalhos seguiam de regulares a bons, até que uma das fichas me chamou a atenção. Era um ótimo texto; na verdade o texto era perfeito. Em linguagem fluente, o autor não apenas resumia a obra do mestre de Turim, mas o contextualizava dentro de sua biografia e da evolução da teoria do direito positivista em que se inseria.

Fiquei num rápido dilema: procuro no "google" para ver se é plágio ou não? Decidi dar um voto de confiança ao aluno-delegado e segui em frente nas correções, atribuindo-lhe nota 9,5.

Qual não foi minha surpresa quando deparei-me, em seguida, com uma ficha-resumo em tudo igual á anterior! Bom, chegara a hora de deixar os pudores pedagógicos de lado e ir ao google ver de onde saíra aquele ótimo texto. Tratava-se de uma resenha de ninguém mais, ninguém menos que Celso Lafer, então ministro de Relações exteriores de FHC! Era a ficha do outro delegado, e logo fui atrás do colega faltante, igualmente "inspirado" no embaixador brasileiro. Que fazer? Zero pra todo mundo, é claro.

Mas, como educação e negócios não rimam mesmo, lá vem a direção da instituição, apelar para que eu relevasse o plágio descarado dos chefes de polícia e oferecesse uma nova oportunidade. Contrariado e após muitos apelos, indiquei nova ficha de leitura, de um texto três vezes maior, em castelhano, sobre teoria dos sistemas. Livro recente, para que não pudessem achar tão facilmente uma resenha à mão para cometerem novo ilícito na minha cara.

Passados alguns dias, três resenhas novas em minhas mãos, uma diferente da outra, sobre o livro de Pedro Nava. Nota para todos, episódio a ser superado.

Dois anos depois, numa conversa informal com um ex-aluno, fico sabendo de um novo dado do episódio: os delegados encomendaram com este ex-aluno a feitura das fichas de leitura!

Conto este episódio pois ele se relaciona de alguma forma com a notícia da remição pela leitura. É sensacional que os presos possam ler nas prisões, é mesmo incrível que a um tempo se libertem dos grilhões físicos bem reais das masmorras brasileiras e também tenham a oportunidade de libertar sua mente por meio do grande ganho que terão com as leituras que farão (espero que tenham acesso a uma boa literatura: quem formará a biblioteca? Já pensou ter que ler apenas Paulo Coelho? Punido duas vezes? Maus tratos? hehe).

Mas vejam que sociedade a nossa... Suponhamos que meus alunos-delegados tenham feito o que fizeram (plágio) por falta de tempo para os estudos. Não problematizemos este aspecto. Então, temos delegados tão ocupados prendendo gente que não têm tempo para leitura e trabalhos acadêmicos. Por outro lado, os presos que tiram o tempo destes delegados vão ter tempo e valorização da atividade da leitura depois de encarcerados, numa situação que parece paradoxal.

 Mas, apenas parece paradoxal. Os delegados não deixaram de fazer a ficha por falta de tempo, mas dentre outras coisas pela falta de compromisso com sua formação acadêmica, a especialização sendo vista como apenas uma forma de pegar um certificado para progredir no plano de carreira. (aliás, tempos depois, alguém percebeu esta demanda na região e montou uma nova empresa de ensino com cursos praticamente de fachada, em que professores faziam que lecionavam e alunos fingiam que estudavam. Deu em muitos processos tramitando no judiciário.)

Vou torcer para que os presos realmente leiam seus livros, abrindo sua mente para todo o universo que a literatura proporciona a todo aquele que tem a oportunidade de se dedicar a ela, como a outras artes.

A moral desta história, se é que tem alguma, é apenas a de ilustrar o mecanismo de seletividade inerente ao sistema penal. Mecanismo que explicita seu funcionamento político direcionado a segmentos politicamente escolhidos, pois, como já o mostrou Machado de Assis n'O Alienista, se apertar o critério vai todo mundo pro xadrez!


quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Vega Sicília 1985

Outro dia passei na livraria da Travessa, no centro do Rio, voltando de uma atividade profissional na Faculdade Nacional de Direito. Comprei uns livros, almocei e voltei pra casa, atravessando a bela baía da Guanabara num catamarã rápido que me deixou na estação de Charitas, bairro de Niterói.

Chegando em casa, vi que uma revista de cortesia da livraria acompanhava meus novos livros. Pegando-a para ler, chamou-me a atenção um texto no final, em que um colunista fixo contava sua aventura (desventura é melhor) com um vinho Vega Sicília que ganhara quando de uma viagem ao exterior. A desventura está no fato de ele não ter podido apreciar seu regalo, pois sua mulher, sem que ele soubesse, serviu as duas garrafas preciosas a um grupo de amigos já bêbados que não teriam notado a diferença entre o que bebiam e um outro vinho qualquer.

Esta narrativa me evocou imediatamente minha própria experiência com um Vega Sicília, em uma noite do início de junho de 2006. Estava eu então na companhia de um grande amigo meu, juiz de direito e que fora também meu professor e era então professor de um curso de direito que eu então coordenava, na cidade de Criciúma.

A ocasião para beber o vinho tido como o melhor da Espanha era o jantar de despedida; depois de 17 dias na capital da Cataluña eu iria embarcar para o Brasil às 06:00h da manhã seguinte, e meu amigo me levou a um clube fechado em que há um restaurante e, importantíssimo detalhe, os vinhos são vendidos a preço de loja, não de restaurante.

Abrimos com um pão catalão, que vem a ser um pão delicioso de fatias firmes em que se esfrega alho, tomate e azeite, podendo-se colocar uma fatia de jamón em cima e mandar ver. Meu amigo, olhando a carta de vinhos bateu o martelo: vamos tomar um Vega Sicília! A garrafa escolhida foi uma de 1985.

Foi o vinho mais especial que já tomei. Realmente uma experiência memorável, tomar aquele vinho em Barcelona. Enquanto bebia, pensava no fato de aquele vinho ter sido engarrafado no longínquo ano de 1985: uma verdadeira cápsula do tempo. Em 1985 eu nem sequer pensava em cursar direito, estando eu no primeiro ano do que se chamava á época "segundo grau", me decidindo com 14 anos de idade em cursar desenho e projetos na Escola técnica da SATC. Duas décadas tinham se passado e aquele vinho estava ali, delicioso!

Depois dele veio outra garrafa, cuja marca não me recordo, um outro ótimo vinho de 1996.

Chegando no apartamento do meu amigo, ficamos a conversar até as três horas da madrugada, derrubando meio litro de uma ótima vodka que eu trouxera direto da Letônia, onde em um pulo rápido de 4 dias eu visitara outro grande amigo que reside no Báltico até os dias atuais.

Pensei eu: que boa medida, encher a cara até a hora do voo e dormir durante toda a viagem, acordando refeito apenas no aeroporto de Guarulhos. Que engano!

Passei mais de dez horas de voo numa ressaca danada, pensando o que seria daquele tubo de metal a 7 mil metros de altura se todos os demais passageiros estivessem na mesma condição debilitada que eu!

Passada a viagem interminável, ficou a memória de um vinho incrível saboreado como se deve: entre bons amigos.
  

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Plebiscito e referendo!

Em resposta às manifestações de junho de 2013 a presidência da República construiu duas respostas de longo prazo no plano político. Primeiro, sugeriu uma reforma constitucional exclusiva, articulada com um plebiscito, para promover a reforma política. Depois, aprovou por meio de decreto da Presidenta a Política nacional de Participação Social, que na verdade apenas dá uma feição mais orgânica ao que já existe, pois a Constituição vigente e diversos diplomas legais específicos institucionalizam no Brasil uma democracia participativa..

Em setembro tivemos os movimentos sociais organizando um plebiscito nacional sobre a reforma política. 7,4 milhões de pessoas votaram pelo SIM.

Dilma ganhou, num quadro em que o Congresso Nacional manteve sua configuração habitual, marcada pela não hegemonia clara do partido do poder federal e uma polifacética configuração com 28 partidos políticos no total. Passada a eleição Dilma fala em plebiscito. Líderes do Congresso respondem: referendo!

Não há uma dicotomia necessária entre plebiscito e referendo. Eu até diria que o melhor mesmo seria articular os dois; seria o mais democrático: o povo escolhe num plebiscito que quer manter o voto obrigatório e quer cláusulas de desempenho e sistema proporcional com lista fechada, por exemplo. Dá-se o tempo para nossos legisladores trabalharem na concretização destas propostas e depois o povo soberano aprova ou reprova o trabalho do CN. Do ponto de vista democrático é o melhor caminho.

Já passou da hora de nossos políticos concretizarem o que a Constituição instituiu em 1988: a democracia se exerce pelos representantes ou diretamente. Ponto final. Esta semana mesmo os Estados Unidos da América estão votando para câmara e senado e mais de 140 plebiscitos!

Se junho de 2013 pode nos dizer alguma coisa é que esta captura da política pelos políticos profissionais como algo seu exclusivo já não tem mais nenhum cabimento.