São Fco.

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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Com o monstro dentro de casa


Nada tem sido maior fonte de dissabor nestes dias que antecedem as eleições gerais de outubro que a explicitação do apoio ao candidato Bolsonaro por parte de pessoas conhecidas e queridas. Vamos tomando conhecimento a cada dia, seja pelas redes sociais, seja pelo velho boca a boca.

A angústia que nos toma conta a cada revelação funesta apenas aparentemente decorre da surpresa que publicamente somos forçados a aparentar. A verdadeira angústia brota de enfim termos de revelar algo tão eficazmente escondido por longos anos: sim, pessoas por quem devotamos grande afeição, pessoas a cujo convívio não podemos ou queremos abrir mão, compartilham de valores que são anátemas para nós.

Certamente o que mais dói em nós é a exposição de nossas contradições, nossa hipocrisia escancarada para todo mundo ver e julgar. Afinal, temos que admitir que apesar de nossos valores assumidos publicamente com orgulho - democracia, direitos humanos, igualdade de gênero, respeito aos direitos LGBT, hostilidade ao racismo etc. - convivemos tranquilamente com pessoas que aderem a valores em tudo opostos àquilo em que acreditamos com tanto empenho.

Não é fácil lidar com contradições e incompatibilidades discursivas. Perelman, no seu tratado da argumentação, trata deste assunto e aponta mecanismos que utilizamos para lidar com as contradições, que acabariam por minar a credibilidade do orador no médio e longo prazo se não receberem o tratamento adequado.

Das três técnicas indicadas pelo autor polaco-belga, vemos que a atitude que se aplica aqui na nossa análise é a atitude diplomática, que consiste em:
"[...] não se desejando, pelo menos num momento ou em determinadas circunstâncias, pôr-se em oposição a uma regra ou resolver, de um modo ou de outro, o conflito nascido da incompatibilidade entre duas regras  que podem ser aplicadas a uma situação particular, inventam-se procedimentos para evitar que a incompatibilidade apareça ou para remeter a um momento mais oportuno as decisões a tomar."

Ficção, mentira e silêncio são mecanismos que utilizamos para não ter que explicitar e resolver as contradições vividas com intensidade e somente assim a convivência de longo prazo, típica da convivência familiar,  torna-se possível em muitos casos.

Nosso dissabor desses dias nasce da sensação de que, depois de tantos anos silenciando e relevando o lado obscuro de grandes afetos nossos, a explicitação do apoio ao candidato do 17 fez chegar o dia da verdade: esses afetos, que por tantos anos tratamos com extrema delicadeza, vêm nos esfregar na cara, com orgulho e espalhafato, que são racistas, homofóbicos, machistas e pró-autoritarismo (o apoio ao 17 vem com todo esse pacote, assumamos de uma vez por todas!)

A psicologia nos ajuda a lidar com isso, ao tratar do fenômeno da ambivalência. Com Freud aprendemos que nossos sentimentos pelas pessoas não tem mão única, sendo marcados pela complexidade: amamos e odiamos simultaneamente cada pessoa de nosso convívio.

Mas se a psicologia ajuda a entender em parte o fenômeno, o fato é que momentaneamente nos vemos derrotados: nossos afetos emergem orgulhosos de se livrarem enfim do nosso 'nojinho' tão duramente cultivado/controlado, apoiados na aparente vantagem de se mostrarem de uma vez por todas como seres autênticos e isentos de contradição - o chapéu da hipocrisia cabendo somente em nós ao menos neste momento de triunfo e gozo explícito.

A nós só nos resta nos segurar firmemente na cadeira, respirar fundo e torcer para que os próximos 30 dias passem com rapidez, permitindo o reinício da grande trégua que é a vida das pessoas que se querem equilibradas e tolerantes.

Torcendo, é claro, para que o projeto regressivo seja derrotado mais uma vez e sempre nas urnas, renovando nossa esperança na democracia como o grande mecanismo de pacificação dos conflitos públicos e privados.