São Fco.

São Fco.

terça-feira, 19 de dezembro de 2017

A uva passa passou de novo

Em julho de 2012, depois de demitir 85 professores (dentre os quais o ex-reitor, o ex-candidato a reitor, uma ex-pro-reitora e o ex-procurador da universidade), o então reitor da UNESC promoveu uma reunião no auditório Ruy Hulse, onde tentou quebrar o gelo da platéia atordoada com o impacto de tantas e inéditas demissões com a infame piadinha-trocadilho da uva passa: "Calma pessoal, tudo passa, até a uva passa". Imagino a cara de quem teve que ouvir isso calado.

Não estou inventando, isso ocorreu realmente.

Na época, a mídia local até teve coragem de estampar na manchete: "demissão em massa na Unesc!". Mas o tom geral era de que as demissões tinham sido necessárias, que a instituição passava por grave crise financeira, que era necessário cortar na carne. Alguns se esmeraram no puxa-saquismo rasteiro, destacando a coragem do gestor e seu sofrimento ao ter que tomar medidas tão duras.

Nenhuma palavra sobre o viés político das demissões. O bom jornalismo ficou muito distante, facilitando a tarefa do então reitor no caminho da adoção da exclusão e perseguição como métodos válidos para tornar mais fácil seu caminho na direção da manutenção e renovação de seu poder pessoal.

Nesta semana vemos que a uva passa passou novamente. Desta vez levou 100 professores! Isso dá 13% do corpo docente total da Unesc, uma demissão maior proporcionalmente que a da Estácio de Sá, que causou revolta em todo o país.

Há apenas seis meses encerrava o mandato do reitor anterior. Todos os colunistas de política da cidade enalteciam o trabalho brilhante por ele realizado, responsável por salvar a instituição do colapso financeiro etc etc etc. Agora, passados apenas seis meses, o jornalismo remunerado esquece oportunisticamente as loas tecidas ao magnífico anterior em prol da blindagem da magnífica de plantão. De novo, o público é convidado a aceitar a tese de que o caos bate à porta da fundação municipal.

Quem não conhece a UNESC a fundo pode pensar que estas demissões - em número impressionante - se inserem no contexto pós-reforma trabalhista, de ajustes das IES privadas para equilibrar seus orçamentos e margens de custos/lucro.

Quem conhece de perto a instituição sabe que o buraco é mais embaixo. Mostrando que aprendeu bem a lição deixada pelo gestor anterior, a atual reitora resolveu praticar o mal todo de uma vez logo no início de seus dois mandatos (algúem tem dúvida? quem ousará ser contra?) e também usou um contexto geral de crise para praticar o ato que funda politicamente sua gestão pelo terror.

Basta ver a nominata dos demitidos para ver que os nomes são escolhidos a dedo. Cito apenas um caso, sem citar o nome para não ser deselegante. Um dos maiores professores da UNESC foi excluído nesta leva. Um professor completo na acepção do termo, bom de sala de aula, bom de pesquisa e extensão. Seu currículo é quilométrico, com diversas publicações internacionais. Um professor senior, que foi pró-reitor na gestão anterior e por isso devia fazer sombra para alguém da gestão atual. Para ter uma ideia da aberração, o sujeito fez doutorado e pós-doutorado com apoio total da UNESC, que agora desperdiça o talento que ajudou a construir. São muitos os casos como este.

Não precisava ser assim. Há uma década tudo era diferente. Respirava-se um clima fantástico na instituição. Edson Rodrigues e Antonio Milioli foram reitores gigantes, de grande caráter democrático, uma visão de mundo invejável. Quem for mais antigo vai lembrar do lema da UNESC na época: "A universidade do abraço!".

Não era um lema vazio, de marketing superficial. Era a expressão de um valor vivido e compartilhado interna e externamente.

Hoje podemos dizer que a universidade do abraço se tornou a universidade do pé-na-bunda.

Escrevo isso aqui porque nenhum "jornal" local vai abordar o tema de modo isento. Isso se dá porque a UNESC é a maior patrocinadora dos meios de comunicação local. Quem paga a banda escolhe a música.

Já que a atual reitora mostrou que vai adotar a cartilha do seu antecessor vou ficar de longe torcendo apenas para que ela siga essa cartilha rigorosamente, fazendo exatamente a mesma coisa: demita o antecessor e bote pra correr o seu vice-reitor atual. Ela já pode contar de antemão com os comentários favoráveis da mídia local, asseverando o "sofrimento" ao tomar a decisão "corajosa".

Lamento muito pelos demitidos e me solidarizo com quem fica. O clima organizacional hoje deve ser simplesmente horrível.

Até 2018!

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

2018: o ano que não vai terminar?

O título dessa postagem rabugenta é uma menção ao livro de Zuenir Ventura: "1968, o ano que não terminou".

Por tudo que vemos até aqui 2018 tem tudo para repetir 68. O penúltimo golpe foi dado em 1º de abril de 1964, com o aplauso de muitos que calculavam que a deposição de Jango poderia lhes beneficiar de alguma maneira. Pensava-se que os militares seguiriam o padrão de pronunciamentos das décadas antecedentes: apoio à ruptura institucional com entrega do poder em seguida a algum civil. Mas desta vez seria diferente e os militares deram o golpe e ficaram com o poder para si. Por 21 anos.

Entre 64 e 68 o golpe foi evoluindo paulatinamente até chegar no seu ápice, o dia 13 de dezembro de 1968, quando o o governo mandou "os escrúpulos de consciência às favas" (fala de Jarbas Passarinho) e baixou o Ato Institucional nº 5. Começava a ditadura escancarada (GASPARI).

Nós estamos agora no período em que ainda subsistem alguns escrúpulos de consciência entre os golpistas e por isso ainda se fala em eleição para o próximo ano, as pessoas ainda podem reclamar de excessos cada vez mais evidentes e crescentes e mesmo na esquerda ainda há alguma movimentação de lideranças.

Mas que ninguém se engane, nossa democracia ainda dá alguns sinais de vida, mas são apenas espasmos de uma vida social e política já amplamente tutelada. Os indicadores são claros e se avolumam, numa crescente que visa apontar a direção inequívoca dos eventos e com isso intimidar quem for contrário, buscando salvar as aparências diante do mundo. Mas, se a sociedade se fizer de desentendida certamente haverá a ruptura escancarada.

Quem diz isso não sou eu. Cito apenas a cúpula do Exército brasileiro, que claramente afirmou em palestras e entrevista na rede Globo (a Globo não faltará, é outra certeza para 2018) que se o Judiciário não impedir que o "socialismo radical" (palavras de um general de pijama no EStadão) petista retome o poder federal as Forças Armadas irão encaminhar a "intervenção militar constitucional", impondo uma solução para o "problema".

Generais falaram isso abertamente. Nenhuma autoridade civil lhes fez qualquer objeção ou menção de responsabilização. O Judiciário claramente age neste sentido, primeiro com uma sentença ilegal que condenou Lula no caso do triplex do Guarujá, agora com o agendamento célere da análise do seu recurso no TRF 4 para fins de janeiro de 2018. Combine isso com a gravíssima decisão do STF no ano passado, que violou em nome da Lavajato uma cláusula pétrea da Constituição, permitindo a execução provisória de decisões condenatórias de 2ª instância e você tem o quadro completo para entender porque este golpe não é (tampouco "foi", pois está sendo) parlamentar. Trata-se de um golpe, até aqui, empresarial-judicial-parlamentar. Acrescentemos, diante do que escrevi acima, mais um ator, sem medo de errar: empresarial-judicial-parlamentar-militar.

É um quadro político, apesar da aparente calma na superfície, de extrema tensão. Os golpistas que  interromperam um longo ciclo de poder legítimo da esquerda democrática implementaram em poucos meses reformas antipopulares que em nada contribuem para uma almejada consolidação do golpe por meio das urnas. Em todas as pesquisas dois candidatos não confiáveis para os golpistas reúnem mais de 50% das intenções de voto para presidente em 2018: Lula e Bolsonaro. O fato é que os setores golpistas não lograram até o momento (e no tempo da política já estamos às portas da "eleição" prevista para outubro) construir um candidato viável. Lula, uma liderança democrática impressionante, teria tudo para se eleger até mesmo no primeiro turno. Como não poderá concorrer, tudo indica que o seu candidato, o candidato que vier a ter o seu apoio será o mais votado. A elite do atraso (Jessé SOUZA) tem que fazer um esforço para entender que manipulação tem seus limites: o povo vota de acordo com seus interesses e por isso uma plataforma de crescimento econômico com inclusão social sempre granjeará a legitimação popular.

Como os golpistas farão o que for necessário para evitar a volta da esquerda, já se pode antever um ano de grandes turbulências. No mínimo, será necessário explicitar a manipulação em diversas esferas, como exemplifica o encaminhamento por Gilmar Mendes da proposta do "semipresidencialismo". Ficará ainda mais clara a manipulação das regras para a indução do único resultado aceitável para as elites do atraso: um governo da elite para atender os interesses da elite.

É difícil imaginar que os setores populares se conformarão com essas manobras palacianas. A esquerda aceitou a destituição de Dilma e se manteve controlada durante as reformas de Temer em grande medida porque apostou todas as fichas na eleição do ano que vem - um erro grave ao meu ver. Que fará esta esquerda quando for inevitável passar o recibo público de que as eleições do ano que vem não serão feitas em moldes que possamos chamar de democráticos? Ainda permanecerá silente? Não creio.

Finalizo registrando que 2017 foi um ano muito triste para a universidade brasileira. A universidade pública é uma voz importante na denúncia do golpe que estamos vivendo e claramente foi montada uma estratégia para a sua criminalização. Foram várias as operações midiáticas promovidas pela polícia federal com o modus operandi da lavajato, que reúne dois ingredientes extremamente danosos: prisões ilegais em quantidade e exposição midiática massiva. Foram vários os casos, os dois mais recentes na UFSC e UFMG. Na UFSC, o reitor preso ilegalmente cometeu o ato extremo, sem que isso tivesse causado qualquer constrangimento na cúpula da PF. Aliás, aqui também o recado foi dado para quem tiver olhos para ver: a delegada condutora do caso foi PROMOVIDA à superintendência da PF em Sergipe. Acorde quem ainda estiver dormindo, porque tudo acontece diante da cara de uma população sonolenta.

Creio que podemos colocar a epígrafe que Dante Alighieri projetou para o seu inferno na porta de entrada de 2018: "Lasciate ogni speranza voi che entrate".

Obs.: na imagem acima o grande motivo de a elite do atraso não ter nenhum apreço pela democracia.

P.S.: Não posso deixar de fazer um registro aqui de um fator que compreensivelmente é pouco citado: a saúde de Michel Temer. A saúde de um chefe de Estado normalmente é objeto de grande segredo, pois sozinha é um fator de estabilização/desestabilização política. Temer tem problemas na próstata. Benigno? Maligno? Poucas pessoas têm esta informação e essas pessoas estão em condições de dar as cartas no momento decisivo. Temer é cardiopata grave. Acompanhei os boletins de sua internação há pouco tempo, quando lhe foram introduzidos stents. A notícia era de obstrução de 90% das artérias, o que em situações normais imporia uma cirurgia de ponte de safena ou mamária. Esta cirurgia não foi feita devido à (1) idade do paciente e (2) sua condição pessoal de chefe de EStado. A saúde de Temer, num ano que já promete ser extremamente complicado, é um fator decisivo a mais.




terça-feira, 3 de outubro de 2017

Quem, de verdade, é culpado de fazer “ouvidos moucos”?





Um dos maiores romances de todos os tempos, sabem-no todos os verdadeiros amantes da literatura – como era o caso do professor Cancelier -, começa assim:

“Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum”

                A ficção tornou-se a realidade da vida deste professor do Centro de Ciências Jurídicas  e Reitor da UFSC no dia 14 de setembro último. Restavam-lhe mais 16 dias de vida, mas então ninguém poderia suspeitar disso.
                Cancelier foi escolhido como o alvo principal de uma operação da Polícia Federal e isso fica claro no nome dado à operação: “ouvidos moucos”. A operação investiga possíveis desvios feitos por servidores e docentes da UFSC em convênios de Ensino à Distância desde o ano de 2006. Cancelier era reitor há pouco mais de um ano e sua participação até aqui apurada teria sido a de avocar o processo administrativo para o Gabinete da Reitoria, uma prerrogativa sua.
Mas, apesar de os desvios serem de muito antes de sua gestão e ele não ter participação na execução das condutas investigadas, o nome escolhido para dar o verniz e maior dimensão à mais uma operação de “limpeza do país” o colocava indevidamente no foco de todo o espalhafato armado por agentes da PF, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal.
Era mais o capítulo dos bons justiceiros contra o “maior mal do país” [não se iludam, os males não são a desigualdade social vertiginosa, o autoritarismo e o obscurantismo], a corrupção, desta vez incrustada numa das maiores universidades públicas do Brasil.  Os bons queriam escrachar quem fizera ouvidos moucos às denúncias do Corregedor, e assim, nesta simplória narrativa que opõe bons e maus, fora conivente e responsável com a maldita corrupção. No dia 14 de setembro os bons escracharam Cancelier, prendendo-o temporariamente por cinco dias [ele foi solto no outro dia, porque o judiciário ainda não está completamente tomado por celerados, mas o estrago já estava feito irreversivelmente].
Como estamos vivendo o apogeu do processo penal do espetáculo - mobilizado inicialmente para apear a esquerda democrática do poder federal e agora agindo de acordo com uma lógica que se tornou autossuficiente - imediatamente à prisão se seguiram os já habituais movimentos dos órgãos do Estado para justificar publicamente a medida em si injustificável: entrevista coletiva com os heróis dando sua versão dos atos monstruosos (R$ 80 milhões de reais desviados!). A decisão da juíza (ir) responsável foi postada em link compartilhado nas redes sociais e em suas 27 páginas poderia se verificar que alguém certamente havia caluniado Cancelier. Sem que sua versão pudesse ser ouvida em situação em que prevalecesse o devido processo legal e a presunção de inocência (de resto sepultada pelo Guardião da Constituição no ano passado), um ato que deveria ser a exceção da exceção mas se banaliza a cada dia fora decretado. Mas todos fazem ouvidos moucos dos males que aos outros afligem, é a regra, e a decisão nunca será lida. Ficam os argumentos quantitativos: decisão “fundamentada” em 27 páginas, investigação de dois meses, inquérito com 12 anexos. Números a ocultar a desproporcionalidade das ações perpetradas pelos agentes do Estado.
Ouvidos moucos fizeram e têm feito também a chamada mídia, os meios de comunicação social. Preguiçosos, habituaram-se a não avaliar mais o material que lhes é fornecidos pelos bons justiceiros, em parte porque acreditam que eles são bons mesmo, em parte porque são preguiçosos.
Assim, imediatamente as reportagens de repercussão nacional passaram a alardear e amplificar o escracho de Cancelier: “Reitor é preso envolvido em escândalo de corrupção de R$ 80 milhões!” Alguns tentaram produzir um raciocínio autônomo, mas que pena, não foi crítico, esgotando-se em comparar a operação em curso com outra de uma década atrás, denominada “moeda verde”: “esta é certamente a maior operação da PF em Florianópolis, superando em muito a operação ‘moeda verde’, disse o colunista de política Moacir Pereira.
Caluniaram Cancelier e ele foi preso sem ter feito mal algum. Ele sim foi vítima de ouvidos moucos, ouvidor de mercador. Primeiro destes agentes do Estado que sem qualquer investidura para tal se arvoraram em defensores do Bem contra o Mal, na lógica explícita de que os fins justificariam sim os meios. Criticados há muito tempo por corromper o Estado de Direito para em tese combater a corrupção, eles gostosamente fazem ouvidos de mercador há alguns anos.
Ouvidos de mercador têm feito os jornalistas – nem quero falar dos órgãos da imprensa, totalmente comprometidos com os interesses de menos de uma dezena de família proprietárias. Jornalistas são seres humanos, que não podem sair por aí reproduzindo as versões da acusação sem ouvir a versão do outro lado. Não podem se considerar inimputáveis por terem optado por suspender o senso crítico ao reportarem as notícias. Jornalistas não podem fazer ouvidos moucos à verdade factual, que não se confunde com a versão de uma das partes, sempre precária. Não é interessante que o princípio do contraditório seja crucial tanto no (bom) direito quanto no (bom) jornalismo, as duas formações do professor Cancelier?
Ouvidos moucos faz a população brasileira, quando ignora os apelos civilizatórios que insistem em gritar por princípios do melhor direito como a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório. Tudo isso num país de base ética cristã; Cristo o primeiro abolicionista penal acusando a hipocrisia geral dos cidadãos de bem prestes a apedrejar a mulher acusada de adultério, parece aqui não ter feito escola.
Agora Cancelier está morto. Somente morto pôde adentrar na instituição que foi sua vida por trinta anos seguidos.
Mas não pensem que a morte interromperá sua desventura. A mídia ontem já noticiava, dando continuidade ao escracho do qual parece ser impossível escapar: “encontrado morto reitor da UFSC, acusado de desvio de R$ 80 milhões em investigação da PF ‘ouvidos moucos’”. Ninguém pense que entre os agentes do Estado haverá alguma reflexão pessoal, algum peso na consciência. Veremos sordidamente a continuidade do escracho, desta vez de alguém que não terá mais como se defender. É que falta já qualquer escrúpulo aos bons, tão conscientes da bondade de sua missão purificadora e santa.
No romance de Kakfa, que citamos acima, o personagem principal sofre as agruras do processo penal e ao final é executado por agentes do Estado. Sua frase final é emblemática sobre a falta de limites inerente a processos desta natureza:

“Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.”

Num país que padece de muitos males, inclusive a corrupção, o que aprendemos a ver no noticiário do Brasil recente é que os verdadeiros corruptos não cometem gestos de grandeza, ausente o sentimento de honra pessoal há muito tempo de suas biografias voltadas apenas à locupletação pura e simples. Corruptos delatam e assim se eximem da responsabilidade criminal no triste Brasil da “Lava jato”.

O professor Cancelier nos deixou esta última lição: ainda existem homens honrados. Saibamos aproveitá-la.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Intervenção militar constitucional?

O país avança consistentemente, desde o processo de deposição da Presidente democraticamente eleita há pouco mais de um ano, num quadro claro de degradação institucional. Para mim fica cada vez mais claro que podemos estar vivendo mesmo os estertores da Carta de 1988.

Só faltavam dois ingredientes para que o desmanche da República de 88 se apresentasse por inteiro: o crescimento político do separatismo sulista e a insubordinação na caserna. Apesar de haver um novo plebiscito promovido pelo movimento "O Sul é o meu país" marcado para as próximas semanas, felizmente este ainda parece um problema distante. Pena que não podemos dizer o mesmo em relação aos militares.

É importante assinalar, em respeito à verdade dos fatos, que até o dia de hoje as FFAA têm se portado de modo irrepreensivelmente republicano, de acordo rigoroso com a Constituição, configurando um quadro até mesmo de exceção diante de outras instituições, perdidas em práticas por vezes ilícitas, por vezes volutaristas, por vezes marcadas pela inércia criminosa.

Mas as coisas estão mudando rapidamente.

Repercute em todo o país uma palestra de um General em uma loja maçônica (a maçonaria, é público e notório, apoiou ostensivamente a deposição da Presidente Dilma Rousseff, nunca é demais assinalar), em que teria, ao responder a uma pergunta da audiência, afirmado com todas as letras que as FFAA já se preparam para cenários sucessivos de degradação institucional, e que mesmo no Alto Comando há esta percepção de que, se o Judiciário não resolver a questão, as FFAA estarão prontas para uma intervenção militar no cenário político.

Acabei de assistir à entrevista do Comandante do Exército no programa do Pedro Bial. Neste programa, o General informa que o General palestrante não foi nem será punido, mas que conversou com ele no Alto Comando. O entrevistado de Bial ainda citou o artigo 142 da CF para "lembrar" que as FFAA teriam autorização constitucional para intervir em caso de instalar-se o caos.

Explicando ainda a fala do General Mourão, disse que as aproximações sucessivas são por exemplo as eleições de 2018.  Será que precisamos desenhar? O que Mourão, respaldado pelo Alto Comando, espera especificamente do Poder Judiciário em relação às eleições de 2018? Aquilo que desde o início afirmamos ser um claro objetivo deste processo todo: o golpe de EStado, apesar de mais suave até aqui e revestido de filigranas jurídicas (todos são), sempre visou retirar definitivamente a esquerda democrática do poder federal. O recado dado esta semana é claro: se o Judiciário não retirar a elegibilidade  do candidato favorito em todas as pesquisas de intenção de voto até aqui realizadas, as FFAA estarão prontas para seu "pronunciamento".

Ou seja, as eleições de 2018 já estão ocorrendo sob o peso de uma ameaça gravíssima emitida pelas FFAA: Lula não pode!

É curiosa esta doutrina da intervenção militar constitucional. Há dois anos esta expressão estava nos cartazes daqueles paneleiros vestidos com a camisa corrupta da CBF que deram o verniz popular à derrubada de Dilma. Agora ela mudou claramente de patamar, circulando pelas altas bocas dos generais do Exército Brasileiro. Isso faz algum sentido?

Nunca é demais lembrar que os artigos da Constituição que tratam do papel das FFAA são bastante claros em sua dicção legal. Depois do trauma da ditadura militar, o constituinte deixou tudo bem amarrado, sendo claro que as FFAA tem um importante papel no concerto das instituições republicanas, sempre subordinadas às autoridades civis.

A afirmação do General Mourão (que mau agouro, outro Mourão!) só pode ter um sentido constitucional: o de que as FFAA não se furtariam em agir em um quadro muito avançado de degradação institucional. Mas, nesse caso, seria aquela situação em que até a guerra civil já se apresenta às portas como alternativa, uma situação em que a Constituição já não apresenta mais a eficácia global mínima, perdendo sua vigência e deixando portanto de ser a constituição do país. Um quadro de anomia. Ou seja, a intervenção militar desejada pelos paneleiros amarelos e agora suscitada pela alta hierarquia das FFAA é antes de tudo um fato político. Ou ela age convocada e subordinada às autoridades civis (sem simulacros) conforme define a Constituição, ou ela será o próprio atestado de que Constituição não mais há entre nós.

De constitucional ela não terá nada. Eles sabem disso. Preparem-se. Larte, infelizmente, estava errada.

Breve artigo do Lédio Rosa no Diário Catarinense


terça-feira, 22 de agosto de 2017

Semipresidencialismo é o novo eufemismo do golpe


No ano passado a Presidenta da República foi destituída do cargo por meio de uma manobra, que utilizou o constitucional instituto do impeachment para dar um voto de desconfiança na chefe de Estado e de Governo. Com este golpe se interrompeu um ciclo de 16 anos da esquerda democrática no poder federal no Brasil. O PSDB e o DEM, partidos derrotados nas últimas eleições ascenderam ao poder, o último interrompendo um verdadeiro processo contínuo de encolhimento político que parecia levá-lo à extinção. Reformas neoliberais foram imediatamente implementadas, como a reforma do ensino, a lei das terceirizações e a reforma trabalhista. A reforma da previdência está à espreita, podendo ser aprovada a qualquer momento.

Por estes dias se fala muito em reforma política. Esta semana se falou em parlamentarismo, ou o seu eufemismo, o semipresidencialismo. Tudo o que vem acontecendo no país desde a destituição ilegal de Dilma Rousseff tem apenas uma direção: dar continuidade ao processo de circunscrição, de delimitação das forças políticas populares e suas lideranças. Não se faz um esforço imenso de golpear-se a democracia e fazer ajustes impopulares para depois permitir que seja alçada novamente ao poder uma liderança do campo democrático e popular. Por isto coloquei a foto de Lula para ilustrar esta postagem. Distritão? Voto distrital? Parlamentarismo? Semipresidencialismo? É de Lula que se trata, "estúpido"! De evitar seu retorno à presidência da República.

Para isso estão sendo feitos filmes, escritos livros, direcionada a linha editorial da mídia hegemônica. Para isso sentenças e acórdãos serão prolatados, a Constituição será alterada.

Mas existe um debate sobre sistemas de governo. Há diversos países que adotam diversos sistemas de governo, de acordo com a sua história. O que nos mostra a história do Brasil?

Em primeiro lugar a história do Brasil nos mostra um país que adotou inicialmente o sistema parlamentar. No século XIX, quando éramos uma monarquia. Esta experiência nos é de pouca valia para pensarmos o retorno do parlamentarismo para o Brasil republicano atual. Porque a base da estabilidade política gerada pelo parlamentarismo imperial era a negação da condição de pessoa à maior parcela da massa de trabalhadores do país. Sim, falo da escravidão.

Na República fomos sempre presidencialistas. Ou quase sempre, pois o parlamentarismo foi adotado em 1961, como golpe. Sim, como golpe, pois foi uma saída "constitucional" para permitir que Jango assumisse a presidência da República como mandava a constituição de então. Tivemos um curto período em que conviveram um presidente chefe de Estado e um primeiro ministro chefe de Governo, aliás, o saudoso Tancredo de Almeida Neves.

Logo um plebiscito foi feito e a experiência parlamentarista encontrou seu fim. Sim, o povo, este detalhe para as elites brasileiras, optou pelo retorno do presidencialismo. Não é demais destacar que tivemos três consultas populares diretas nacionais em nossa história política, e duas delas foram sobre o tema do parlamentarismo. Nestas duas ocasiões o povo, este detalhe, escolheu o presidencialismo. Por este motivo espertalhões como Gilmar Mendes, Rodrigo Maia e Michel Temer estão a falar em semipresidencialismo. Para não assumir frontalmente a sacanagem que estão prestes a cometer com o sistema político e com a democracia do Brasil.

Existem muitas discussões que podem ser feitas sobre os sistemas de governo. A mais importante, porque vai direto ao ponto, e nós não podemos nos deixar ludibriar neste momento decisivo para o país,  é que a mudança de sistema neste preciso momento tem a clara intenção de sabotar a possível volta da esquerda ao poder por meio do voto. A direita não tem um candidato competitivo e as reformas que estão promovendo nunca serão sufragadas pela população em um contexto de eleições livres. Daí a necessidade de circunscrever o poder popular a uma função decorativa, cerimonial, que é o papel do chefe de Estado nos regimes parlamentaristas. O rei reina, mas não governa. Para as elites ilustradas brasileiras, o papel reservado à esquerda será o de apertar mãos de outros chefes de Estado e prestar condolências em tragédias naturais nacionais. Isso Lula poderia fazer. Ou um seu indicado. Mas as políticas públicas, estas são preciosas demais para deixar em mãos tão ameaçadoras. No parlamentarismo, este é o ponto crucial, o povo perde o controle direto do processo político que tem no presidencialismo. É só observar o que acontece em países como Espanha e Itália.

Além disso, o parlamentarismo institucionaliza a instabilidade política, enfraquecendo a cidadania política e fortalecendo o poder oculto das elites, que dispõem de mais elementos para fragilizar as lideranças entronizadas por meio do voto. Trata-se de um ataque frontal ao princípio constitucional da soberania popular.

Imaginem um parlamentarismo de partidos débeis, caso brasileiro! É o sonho de Joesleys, Odebrechts, Marinhos e Setúbals! Preparem-se, pois a permanecer a inércia e fragmentação da esquerda e a avidez dos setores da elite nacional, este sonho se tornará realidade em breve.


quarta-feira, 16 de agosto de 2017

Reforma política em tempo de golpe

Os jornais anunciam que hoje a Câmara dos Deputados poderão alterar substancialmente as regras do jogo político no Brasil. A principal medida a ser tomada é a substituição do sistema proporcional pelo assim denominado "distritão", modelo em que, em cada estado, os mais votados pura e simplesmente serão aqueles que irão compor a bancada junto às casas legislativas.

Desde 2015 estamos no modo golpe, esta observação é essencial para entender os ventos de mudança. O instituto constitucional do impeachment foi utilizado "ad hoc" como voto de desconfiança (manobra típica do parlamentarismo, estranha ao presidencialismo) para interromper o ciclo de 4 mandatos consecutivos da esquerda na Presidência da República.  Ninguém deve imaginar que um esforço desta natureza será acompanhado de leniência na sua consolidação. Tudo o que é feito desde a destituição da presidenta Dilma Rousseff é voltado a evitar o retorno da esquerda ao poder federal.

Não nos espantemos com nada: mudança no sistema eleitoral, adoção do parlamentarismo, perseguição judicial ao ex-presidente Lula, tudo será feito para que a direita permaneça no controle do país.

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Sempre digo aos meus alunos que nossas instituições jurídico-políticas são muito sofisticadas e até mesmo bem construídas. Na minha opinião nossas instituições são melhores em muitos aspectos aos de muitos países que chamamos de democracias consolidadas. Elegemos diretamente o chefe do Executivo (federal, estadual e municipal). Isso não é o que acontece nos EUA e também não se repete nos países parlamentaristas em relação ao chefe de governo. Neste sistema, o cidadão vota e somente depois da apuração e aferição da força de cada agremiação partidária é que as forças políticas definirão com autonomia em relação aos eleitores a configuração do governo.

O principal item de sofisticação em nossas instituições é o sistema eleitoral proporcional. Poucos o compreendem, dada a sua abstração. Ouço muita gente esclarecida criticá-lo por aspectos que na verdade são decorrentes de suas virtudes. Poucos entendem que o Parlamento, queiram ou não, gostem ou não, depende para o seu funcionamento dos partidos políticos.

A eventual derrota do sistema eleitoral proporcional nestes dias tem um efeito estrutural profundo. É que é ele que permite uma sofisticada composição dos Parlamentos em todos os níveis, levando para as casas legislativas políticos e partidos que representam bandeiras minoritárias. Com a minoria representada no Parlamento, o sistema democrático apresenta melhores condições de funcionar como um sistema de construção de compromissos e consensos entre as diversas forças políticas existentes numa nação complexa como o Brasil. Com a adoção do "distritão" e posteriormente do sistema distrital, o Parlamento perde este potencial e o sistema democrático propende a se tornar mais oligárquico, o Parlamento sendo cada vez mais a casa das elites.



  

quarta-feira, 7 de junho de 2017

TSE julga Temer nesta semana



Quando era criança cansei de ouvir dos comentaristas esportivos de Santa Catarina, os hilários Miguel Livramento e Roberto Alves: "o jogo é jogado e o lambari é pescado".

Assistindo agora pela manhã a leitura de parte do voto do relator Herman Benjamin no TSE nas ações que poderiam levar à cassação da chapa vencedora em 2014 esta frase não me saiu da cabeça.

É que Benjamin foi realmente brilhante até aqui. Mostrou não apenas consistência jurídica, mas noção de ordem retórica do discurso (ao amarrar as preliminares no mérito, impedindo de o impedirem de ser ouvido) e muita malandragem e ironia para conter a aberração institucional que é Gilmar Mendes (presidente da corte).

Benjamin jogou muito, jogou tudo o que sabe, mas ao final terá apenas um voto. Por mais que tenha gasto horas tentando amarrar argumentativamente Gilmar Mendes (mostrando como ele votou no mesmo processo há um ano atrás, quando lhe interessava manter estas ações como alternativa para apear o PT do poder federal), este esforço resultará inútil, pois o presidente do TSE já demonstrou por inúmeras vezes não ser suscetível de constrangimentos de ordem moral.

É por isso que a consistência, o brilho retórico e intelectual, a elegância do relator, são apenas itens de consumo para que tiver o tempo e a paciência de acompanhar a continuidade desta sessão tão importante e tão modorrenta. No fundo, apenas servirá de verniz para contribuir para ocultar a policitidade intrínseca do direito.

Esta questão foi vencida por 4 a 3 quando o presidente do TSE conseguiu empurrar o julgamento para depois do encerramento dos mandatos de dois dos ministros, dando a oportunidade de Michel "tem que manter isso aí, viu?" Temer indicar novos ministros com voto já definido desde criancinha.

Benjamin pode continuar jogando bonito, mas o lambari o Gilmar Mendes já pescou e comeu faz tempo.

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Diretas já!





(A foto acima é da manifestação pelas diretas ocorrida em Copacabana neste último domingo)

Trinta e três anos depois nossas dificuldades de implementar um regime democrático no Brasil nos levam a gritar de novo pela realização de diretas já!

Em 1984 era a explosão popular depois de vinte anos de uma ditadura insuportável, responsável por tantos atrasos para o país. Em 2017 a reivindicação por eleições gerais diretas (para presidente e para o Congresso Nacional) surge em contexto bastante diverso.

Trata-se da única saída democrática para o impasse a que nossas elites nos conduziram, desde que promoveram uma desestabilização institucional agressiva para interromper o ciclo político renovado nas urnas a cada quatro anos desde 2002.

Judiciário, mídia, empresários, setores majoritários do Congresso Nacional apostaram na ruptura da ordem constitucional para promover uma agenda política e econômica regressiva que não foi aprovada nas urnas pela população. Pior, para tal aceitou fortalecer no poder um grupo parasitário, corrupto, liderado por uma figura lamentável, que não goza da confiança sequer de 5% da população brasileira.

Surpreendido em atividades criminosas por ação da PGR e STF, o presidente é a figura que incorpora em sua pessoa tudo aquilo que a Nação quer ver extirpado da cena política: a corrupção, a incompetência, a destruição de direitos sociais, o flerte com práticas autoritárias. Vejam a que ponto chegamos: a solução política está inviabilizada porque o presidente simplesmente teme a possibilidade de vir a ser preso no momento seguinte da renúncia ao posto! O país não pode permanecer refém deste tipo de situação.

Michel Temer não é o homem certo para o momento crítico que vivemos. Quem o é?

Se a parte mais importante da constituição de 1988 ainda for para valer, aquela parte que afirma que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes ou diretamente", é o povo que deve indicar esta pessoa.

Também as ditas "reformas" só poderão ser aprovadas com legitimidade após o restabelecimento de um quadro de normalidade institucional democrática. Por isso gritamos: diretas já!

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Prefácio do meu livro: Apontamentos para uma Teoria do Direito



O que é o direito? A quem ele serve? Qual sua relação com outros fenômenos correlatos? Estas são algumas das perguntas com que venho lidando desde o ano de 1997, ano em que lecionei pela primeira vez para uma turma de graduação. Era uma turma do curso de Direito e a disciplina era Filosofia do Direito. Vinte anos depois continuo lecionando teoria do direito na graduação e no mestrado e tenho que confessar que as perguntas em nada mudaram.
            Se é verdade que as indagações continuam as mesmas, não é igualmente verdadeiro que as respostas sigam inalteradas, alheias ao turbilhão que o mundo concreto impõe sobre a evolução do direito e da própria reflexão sobre o direito. Quando comecei minha trajetória profissional no magistério superior jurídico eram tempos plenos de esperança. Tinha-se saído fazia uma década de uma tacanha ditadura militar que durara pouco mais de vinte anos, vivia-se sob a recente vigência de uma constituição nova, marcada pelo compromisso com a democracia e a justiça social, parecia mesmo que aos juristas incumbia uma parte importante do processo histórico nacional, qual seja, o de dar uma contribuição decisiva no processo de redemocratização rumo a uma plena consolidação democrática no Brasil. Reformar as leis, fortalecer as instituições jurídico-políticas, desenvolver aqui – de modo inédito - uma cultura de respeito aos direitos humanos e à democracia mais plena e efetiva.
            De início, os juristas mais engajados com os novos tempos se organizaram em movimento – do direito alternativo – e procederam a uma importante crítica da cultura jurídica então vigente no país, em grande medida dominada por uma inércia do pensar derivada dos anos em que vivemos sob o comando de generais-presidentes. Foram tempos em que se denunciou a falsa neutralidade do direito e do Estado e se propugnou por um compromisso dos juristas progressistas com a supremacia da nova constituição.
            Em seguida, buscou-se alhures teorias do direito que pudessem ajudar nesta tarefa e ocorreu uma verdadeira transposição teórica extremamente artificial cujos resultados em parte hoje colhemos com certo desalento. O próprio problema do direito brasileiro foi posto nos termos dos autores que logo ficaram em evidência, primeiro nos programas de mestrado e doutorado, em seguida na doutrina jurídica, na jurisprudência e, por fim, chegou-se mesmo até a legislação processual civil. Nesta narrativa tratava-se de enfrentar a herança do positivismo jurídico – em claro mimetismo com o que sucedeu na Europa do pós-Guerra, o regime militar fazendo as vezes do regime nazista – e buscar a redenção definitiva da Nação no labor exclusivo dos juristas, os únicos seres aptos a reconectar direito e moralidade em especial  por meio de um “adequado” manuseio dos princípios jurídicos. Princípios, ponderação, razoabilidade, proporcionalidade, “resposta certa”, estes termos invadiram a teoria do direito brasileira a partir de meados dos anos noventa do século passado e parecem ter se instalado de modo definitivo. Obras de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy foram recepcionadas no país de modo atabalhoado e logo passaram a integrar plenamente o senso comum teórico dos juristas.[1] Há quem já fale com desenvoltura sobre uma “americanização” [sic]do direito brasileiro.
            Concomitantemente à importação de teorias ditas pós-positivistas o país passou por uma série de inovações legislativas com forte impacto no desenho das instituições jurídico-políticas, a começar pela Emenda Constitucional nº 45, conhecida como a Reforma do Judiciário. Estas inovações – a última delas é o Código de Processo Civil, em 2015 – todas trouxeram mudanças no sentido de fortalecer as instâncias superiores do Poder Judiciário, dotando-o também de uma unidade de ação antes desconhecida entre nós. A junção de uma teoria legitimadora da função dos juízes com reformas institucionais constantes no sentido de atribuir mais poder e unidade ao Poder Judiciário legou-nos um quadro disfuncional em que viceja uma verdadeira hipertrofia do Poder Judiciário no concerto dos poderes da República.
            Este agigantamento do Judiciário, longe de nos trazer a consolidação democrática e o império da Constituição, culminou, no trágico biênio 2015-2016 com o lamentável papel desempenhado por este na gravíssima crise política que levou à destituição da Presidenta da República em agosto de 2016. Todos os princípios, ponderações e boas intenções de fachada dos juristas não foram suficientes para esconder o papel ativo[2] que o Judiciário brasileiro teve no processo de utilização ad hoc do instituto do impeachment como mecanismo de mero voto de desconfiança de Dilma Rousseff. Melancólico, por sinal, que neste processo infame tenha participado o Guardião da Constituição com denodo e sem pejo de sacrificar até mesmo cláusulas pétreas, como no episódio em que, para acelerar as delações premiadas no contexto da operação “lava jato” (verdadeira constituição da República, na prática, nestes dias) houve por bem de autorizar as execuções provisórias em ações criminais, atropelando o princípio da presunção de inocência, um dos pilares do direito de nações tidas como civilizadas.
               O momento na teoria do direito no Brasil é de proceder a uma intensa autocrítica. A defesa de um modelo institucional que colocou os juristas em lugar mais importante – um lugar mítico - que o do cidadão comum conduziu o país para longe da democracia e do Estado de Direito. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 trazia consigo um esforço compromissário a ser desenvolvido com o passar dos anos de combinar a legitimação democrática – até mesmo com mecanismos robustos de democracia direta e participativa – com proteção das minorias por meio de direitos fundamentais. Com o tempo, os juristas, ávidos de poder, produziram um discurso que transmutou este compromisso em dicotomia, o governo da maioria de um lado contra a vigência dos direitos fundamentais de outro, e não são poucos os que ainda enchem a boca para falar em “justiça contramajoritária” com este tom claramente elitista.
            A tarefa urgente de uma teoria do direito brasileira na atualidade é a de recuperar o discurso original da Carta de 1988, retirando das mãos gulosas dos juristas a pretensão de serem os únicos portadores da juridicidade, evidenciando que em uma sociedade o direito não se restringe a uma ciência de oráculos com capas pretas e seu jargão incompreensível – e pedante -, mas é obra também de todos os cidadãos que convivem na República Democrática, resultado não de um saber mitificado mas das lutas sociais cotidianas e perenes. O grande desafio não é o de extrair de fórmulas linguísticas ultra genéricas e abstratas a resposta certa segundo os especialistas, mas o de fortalecer os mecanismos democráticos de construção do direito a partir das lutas sociais, no âmbito do Estado e para além dele[3].
            Estes estudos aqui registrados, voltados aos alunos da graduação em direito, pretendem ser mais uma contribuição neste sentido. Para isto, fogem de rótulos simplistas que pretendem explicar o direito a partir de reducionismos grosseiros e revisitam autores importantes na evolução recente do pensamento jurídico. Com Hans Kelsen querem dar conta das dimensões sintáticas e semânticas do fenômeno jurídico e enfatizar a politicidade do direito, mesmo nas sentenças e acórdãos do Judiciário, e ressaltar o compromisso deste autor quanto à legitimidade do direito quando se configura na forma democrática. Penso que Kelsen nos serve de antídoto contra a tentação do neojusnaturalismo e suas intenções pouco veladas de sequestrar a democracia em nome do Estado de Direito, que leva fatalmente a uma concentração ainda maior do poder na mão de grupos e corporações instaladas no Estado, afastando-nos cada vez mais de um projeto democrático popular. Com Perelman buscam iluminar o aspecto pragmático do direito, espaço de elaboração de discursos em que predomina uma racionalidade argumentativa. Por fim, buscam no pluralismo jurídico ampliar a compreensão do fenômeno jurídico na contemporaneidade, na medida em que nem o direito nem a democracia que temos e queremos cabe mais no apertado conceito de direito estatal que, não obstante, ainda subsiste com declinante centralidade. Um segundo volume, voltado a analisar as elaborações teóricas mais recentes denominadas amplamente como “pós positivistas”, deverá se juntar brevemente a este primeiro texto.
            Este livro sintetiza, de alguma maneira, muito do que tenho pensado sobre o direito nestes últimos vinte anos de docência. Foram anos de muita interlocução e construção coletiva de saberes. Não posso deixar aqui de agradecer aos meus professores, em especial Leonel Severo Rocha, Antonio Carlos Wolkmer e Lédio Rosa de Andrade. Neste período convivi com muitos amigos juristas especiais, que muito contribuíram para minhas reflexões sobre o direito e minha construção pessoal como professor. Sou especialmente grato a Sergio Graziano, David Sanches, Gaetano Pecora, Dilvânio de Souza, Clélia Fontanela, Cecilia Caballero, Daniel Torres de Cerqueira, Rogerio Dultra, Douglas Leite, Vladimir Luz e Gustavo Pedrollo. Devo muito também à convivência com os milhares de alunos de direito que passaram por mim em todos estes anos, a quem agradeço na pessoa de três ex-alunos que se tornaram bons amigos: Tiago Gomes Fernandes, Eduardo Messaggi Dias e Daniel Thiago Otherback.
            Niterói, abril de 2017.
            O Autor


[1] Conceito fundamental do saudoso professor Luiz Alberto Warat.
[2] O judiciário, em todas as instâncias, foi decisivo fomentador da destituição da Presidenta, por meio de diversos modos, mais ou menos explícitos. Apenas alguns exemplos: abuso seletivo de prisões processuais, muitas vezes agendadas para datas próximas de eleições gerais; vazamento seletivo de conversas telefônicas interceptadas; ausência de resposta a pedidos de prisão de autoridades durante meses; decisão em segunda instância que autoriza o juízo de primeira instância a tomar medidas excepcionais em contextos tidos como excepcionais; uso matreiro de conteúdos de delações para gerar resultados extraprocessuais em articulação com setores principais da mídia de abrangência nacional.
[3]Um sistema jurídico que confere a autoridade final a uma
assembléia de centenas de representantes - e que o faz como uma forma de expressar
princípios de soberania popular, autogoverno e democratica
auto-determinação - pode exigir um tipo diferente de
ciencia do direito do que é apropriado para um sistema dominado por
éditos de um único legislador racional.” Em:
WALDROM, Jeremy. The dignity of legislation. Mariland Law Review. Volume 54. Issue 2. Article 12. 1995.p. 665.