São Fco.

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sexta-feira, 15 de abril de 2016

Diante do Supremo

Ontem, 14 de abril, o Supremo Tribunal Federal fez sessão extraordinária a partir das 17h, para julgar ações impetradas nos dias anteriores e que tinham por objeto questões relativas ao processo de "impeachment" conduzido - por enquanto - na Câmara dos Deputados por ninguém menos que Eduardo Cunha.

Não assisti toda a sessão; aliás não sei porque assisti parte da sessão. O que vi foi exatamente o que esperava.

Na ADIN do PCdoB, que tinha conteúdo idêntico aos dois mandados de segurança impetrados por dois deputados federais, pedia-se que o Supremo se manifestasse sobre a manobra de EC, que havia definido uma ordem de votação nominal que descumpria o disposto no regimento da Câmara dos Deputados. Em cima da hora o astuto - a quem ninguém até aqui conseguiu pôr limites - percebeu o risco de ser admoestado pelo STF e reformulou malandramente suas disposições. Faria a votação alternada entre Norte e Sul, mas por bancadas estaduais, não por deputados, como reza o regimento. Na prática ele manteria o seu desígnio de tentar influenciar a votação, deixando o NE todo votando no final, quando o resultado da votação talvez já esteja selado.

A questão parece de menor importância, mas não é. Como a votação está apertada e indefinida, o encaminhamento da votação pode sim influenciar o resultado. Não por um "efeito manada" citado por alguns ministros, mas sim pelo cálculo frio de parlamentares de pouca fibra ideológica e consistência política, que na hora "h" podem ter o temor compreensível de ficar no lado perdedor. Muitos deputados tem este perfil. O nome do primeiro a votar já ilustra este quadro: Abel Galinha (quem?)

Vendo as manifestações dos ministros (destaque para Rosa Weber, nervosíssima, o que está fazendo ali?), impossível não lembrar todo o tempo da parábola kafkiana "Diante da lei", inserida no seu livro "O processo".

Nesta parábola um homem do campo procura a lei e chega até seus portões. No primeiro portão há um guarda que pede que ele espere, apenas descrevendo o que pode acontecer (possibilidade de coisas terríveis) se ele não esperar. O homem espera toda uma vida sem poder entrar "na lei".

Ontem o Supremo mais uma vez se portou como o porteiro da lei da parábola de Kafka. Quem acionou o tribunal o fez na esperança de que o tribunal os conduzisse até a lei e proporcionasse uma pequena dose de justiça em sua prestação jurisdicional. Mas os ministros (a maioria) agiram como o porteiro kafkiano, orientando o peticionário para que se sentasse e esperasse. Foi extremamente irritante acompanhar o falatório, em que parecia haver um esforço hercúleo para demonstrar a maior alienação dos fatos do momento histórico em Brasília.

A situação era clara para qualquer pessoa normal, ou seja, impedir que um homem processado criminalmente no STF mais uma vez atropelasse a Câmara dos Deputados em um momento decisivo e único, o da votação do impeachment dali a três dias. Para fazer isso o STF apenas precisaria fazer valer o texto claro do regimento, que fala de alternância de deputados e não de bancadas. O Supremo não fez isso, tratando a questão de forma diletante, como se se tratasse de uma mera interpretação de textos que permitiam mais que uma interpretação. Ao fazer isso deixou de mandar um recado a Cunha, orientando que se contivesse. E mandou o recado inverso: pode continuar com sua aguda astúcia que aqui você encontrará um auditório se fazendo de morto para não se comprometer.

(O STF também não atendeu à ação movida pela AGU, que indicava nulidades no processo até aqui realizado).

Hoje de manhã os jornais estamparam: "nova derrota do governo no STF!"

A parábola de Kafka nos fala disso, de um judiciário que apesar de estar aparentemente relacionado com  a lei, é o último lugar a que deveríamos ir para encontrá-la. Penso aqui na dimensão mais abrangente do termo "lei", aquele que remete inevitavelmente às ideias fortes de verdade e justiça.

Outro nascido em Praga, Hans Kelsen, bem enxergou esta questão. Toda a Teoria Pura do Direito é construída para explicar que o direito é uma estrutura política de tomada de decisões, somente isso. Ao prolatar uma sentença o judiciário cria uma norma, sendo apenas casual que seu conteúdo possa estar contido em uma norma geral superior a aplicar. Não existe uma razão jurídica quando se trata de entender o funcionamento do direito, afirma Kelsen, O projeto de um Estado de Direito, para Kelsen, não pode encontrar base apenas racional, sendo um projeto essencialmente político.

No transe em que nos encontramos nestes dias decisivos, em que um governo legitimamente eleito está diante da clara possibilidade de sofrer um golpe paraguaio (depois de meses a fio desestabilizado pela operação lava jato, sob a liderança de um juiz federal operando o trinômio prisão-delação-vazamento), Kelsen e Kafka nos aportam uma importante lição: quem se limitar a bater à porta da lei corre o risco de passar a vida conversando com o porteiro e morrer sem dela (a lei) ter sentido sequer o cheiro.

É preciso compreender profundamente que não há razão jurídica. Há poder. Mesmo no judiciário. Mesmo no STF, o "guardião da Constituição". Ontem o STF poderia (se quisesse, se tivesse a vontade de fazê-lo) ter adentrado na lei. Preferiu dar uma espiadela pela frestinha da grande porta e lá dentro viu Eduardo Cunha se movimentando freneticamente. Mesmo diante desta cena absurda (de um processado criminalmente estar desenvolto dentro dos portões da lei), o STF vacilou e preferiu se manter no papel de porteiro kafkiano.

Não espero nada do Supremo. Só torço que na próxima espiadela que os onze porteiros precisem dar eles encontrem por detrás do grosso portão não mais  Eduardo Cunha, Temer "et caterva", mas o povo eufórico que finalmente se recusou a ficar sentado ouvindo a arenga interminável.

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