São Fco.

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terça-feira, 3 de outubro de 2017

Quem, de verdade, é culpado de fazer “ouvidos moucos”?





Um dos maiores romances de todos os tempos, sabem-no todos os verdadeiros amantes da literatura – como era o caso do professor Cancelier -, começa assim:

“Certamente alguém havia caluniado Josef K., pois uma manhã ele foi detido sem que tivesse feito mal algum”

                A ficção tornou-se a realidade da vida deste professor do Centro de Ciências Jurídicas  e Reitor da UFSC no dia 14 de setembro último. Restavam-lhe mais 16 dias de vida, mas então ninguém poderia suspeitar disso.
                Cancelier foi escolhido como o alvo principal de uma operação da Polícia Federal e isso fica claro no nome dado à operação: “ouvidos moucos”. A operação investiga possíveis desvios feitos por servidores e docentes da UFSC em convênios de Ensino à Distância desde o ano de 2006. Cancelier era reitor há pouco mais de um ano e sua participação até aqui apurada teria sido a de avocar o processo administrativo para o Gabinete da Reitoria, uma prerrogativa sua.
Mas, apesar de os desvios serem de muito antes de sua gestão e ele não ter participação na execução das condutas investigadas, o nome escolhido para dar o verniz e maior dimensão à mais uma operação de “limpeza do país” o colocava indevidamente no foco de todo o espalhafato armado por agentes da PF, do Ministério Público Federal e da Justiça Federal.
Era mais o capítulo dos bons justiceiros contra o “maior mal do país” [não se iludam, os males não são a desigualdade social vertiginosa, o autoritarismo e o obscurantismo], a corrupção, desta vez incrustada numa das maiores universidades públicas do Brasil.  Os bons queriam escrachar quem fizera ouvidos moucos às denúncias do Corregedor, e assim, nesta simplória narrativa que opõe bons e maus, fora conivente e responsável com a maldita corrupção. No dia 14 de setembro os bons escracharam Cancelier, prendendo-o temporariamente por cinco dias [ele foi solto no outro dia, porque o judiciário ainda não está completamente tomado por celerados, mas o estrago já estava feito irreversivelmente].
Como estamos vivendo o apogeu do processo penal do espetáculo - mobilizado inicialmente para apear a esquerda democrática do poder federal e agora agindo de acordo com uma lógica que se tornou autossuficiente - imediatamente à prisão se seguiram os já habituais movimentos dos órgãos do Estado para justificar publicamente a medida em si injustificável: entrevista coletiva com os heróis dando sua versão dos atos monstruosos (R$ 80 milhões de reais desviados!). A decisão da juíza (ir) responsável foi postada em link compartilhado nas redes sociais e em suas 27 páginas poderia se verificar que alguém certamente havia caluniado Cancelier. Sem que sua versão pudesse ser ouvida em situação em que prevalecesse o devido processo legal e a presunção de inocência (de resto sepultada pelo Guardião da Constituição no ano passado), um ato que deveria ser a exceção da exceção mas se banaliza a cada dia fora decretado. Mas todos fazem ouvidos moucos dos males que aos outros afligem, é a regra, e a decisão nunca será lida. Ficam os argumentos quantitativos: decisão “fundamentada” em 27 páginas, investigação de dois meses, inquérito com 12 anexos. Números a ocultar a desproporcionalidade das ações perpetradas pelos agentes do Estado.
Ouvidos moucos fizeram e têm feito também a chamada mídia, os meios de comunicação social. Preguiçosos, habituaram-se a não avaliar mais o material que lhes é fornecidos pelos bons justiceiros, em parte porque acreditam que eles são bons mesmo, em parte porque são preguiçosos.
Assim, imediatamente as reportagens de repercussão nacional passaram a alardear e amplificar o escracho de Cancelier: “Reitor é preso envolvido em escândalo de corrupção de R$ 80 milhões!” Alguns tentaram produzir um raciocínio autônomo, mas que pena, não foi crítico, esgotando-se em comparar a operação em curso com outra de uma década atrás, denominada “moeda verde”: “esta é certamente a maior operação da PF em Florianópolis, superando em muito a operação ‘moeda verde’, disse o colunista de política Moacir Pereira.
Caluniaram Cancelier e ele foi preso sem ter feito mal algum. Ele sim foi vítima de ouvidos moucos, ouvidor de mercador. Primeiro destes agentes do Estado que sem qualquer investidura para tal se arvoraram em defensores do Bem contra o Mal, na lógica explícita de que os fins justificariam sim os meios. Criticados há muito tempo por corromper o Estado de Direito para em tese combater a corrupção, eles gostosamente fazem ouvidos de mercador há alguns anos.
Ouvidos de mercador têm feito os jornalistas – nem quero falar dos órgãos da imprensa, totalmente comprometidos com os interesses de menos de uma dezena de família proprietárias. Jornalistas são seres humanos, que não podem sair por aí reproduzindo as versões da acusação sem ouvir a versão do outro lado. Não podem se considerar inimputáveis por terem optado por suspender o senso crítico ao reportarem as notícias. Jornalistas não podem fazer ouvidos moucos à verdade factual, que não se confunde com a versão de uma das partes, sempre precária. Não é interessante que o princípio do contraditório seja crucial tanto no (bom) direito quanto no (bom) jornalismo, as duas formações do professor Cancelier?
Ouvidos moucos faz a população brasileira, quando ignora os apelos civilizatórios que insistem em gritar por princípios do melhor direito como a presunção de inocência, o devido processo legal, o contraditório. Tudo isso num país de base ética cristã; Cristo o primeiro abolicionista penal acusando a hipocrisia geral dos cidadãos de bem prestes a apedrejar a mulher acusada de adultério, parece aqui não ter feito escola.
Agora Cancelier está morto. Somente morto pôde adentrar na instituição que foi sua vida por trinta anos seguidos.
Mas não pensem que a morte interromperá sua desventura. A mídia ontem já noticiava, dando continuidade ao escracho do qual parece ser impossível escapar: “encontrado morto reitor da UFSC, acusado de desvio de R$ 80 milhões em investigação da PF ‘ouvidos moucos’”. Ninguém pense que entre os agentes do Estado haverá alguma reflexão pessoal, algum peso na consciência. Veremos sordidamente a continuidade do escracho, desta vez de alguém que não terá mais como se defender. É que falta já qualquer escrúpulo aos bons, tão conscientes da bondade de sua missão purificadora e santa.
No romance de Kakfa, que citamos acima, o personagem principal sofre as agruras do processo penal e ao final é executado por agentes do Estado. Sua frase final é emblemática sobre a falta de limites inerente a processos desta natureza:

“Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.”

Num país que padece de muitos males, inclusive a corrupção, o que aprendemos a ver no noticiário do Brasil recente é que os verdadeiros corruptos não cometem gestos de grandeza, ausente o sentimento de honra pessoal há muito tempo de suas biografias voltadas apenas à locupletação pura e simples. Corruptos delatam e assim se eximem da responsabilidade criminal no triste Brasil da “Lava jato”.

O professor Cancelier nos deixou esta última lição: ainda existem homens honrados. Saibamos aproveitá-la.

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