São Fco.

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terça-feira, 16 de novembro de 2010

Gaspari, a ditadura e a Suprema Corte


Artigo do Ministro do STf Gilmar Mendes na Folha de hoje.

"Faz quase 50 anos: designado embaixador em Washington pelo governo de 64,
o general Juracy Magalhães, entusiasmado pelo estilo de vida dos "irmãos
do norte", soltou a frase infeliz: "O que é bom para os Estados Unidos é
bom para o Brasil". Até hoje faz escola.

Admirador da ditadura brasileira e macaqueador dos americanos, Elio
Gaspari gosta muito de comparar modos e feitos da Suprema Corte com o
nosso Supremo Tribunal. Erra feio, até porque cada jurisdição tem feições
próprias.

Além da disparidade dos sistemas jurídicos -lá vige o "common law",
enquanto aqui se adota o direito romano-, beira o nonsense confrontar a
aplicação da vetusta Carta americana de seis artigos com a da imberbe
Constituição pátria de quase 300 dispositivos, muitos dos quais ainda a
requerer complementação legislativa.

Se, por teimosia, despreparo ou autoindulgência, o jornalista persistir em
traçar paralelos entre instituições ou culturas tão díspares, deveria -a
exigir-se um mínimo de honestidade intelectual- citar também algumas das
vicissitudes que acabaram por fazer a corte americana avalizar, durante
décadas, regimes de intolerância, como a terrível escravidão (a exemplo do
caso Dredd Scott) ou, para nem ir tão longe, casuísmos polêmicos, como os
que permearam o caso Bush versus Gore.

Decisões controvertidas e outros percalços fazem parte do aprendizado ou
da história de qualquer magistratura, cujo grau de transparência muito
serve ao fortalecimento da democracia. Daí por que não cabe sonhar, como
quer Gaspari, com "a etiqueta da corte americana".

Felizmente -e muito em função dos esforços de aproximação dos últimos
anos-, o Supremo abandonou a torre de marfim que tanto o distanciava dos
cidadãos brasileiros. Os julgamentos, que foram sempre públicos, hoje em
dia estão mais acessíveis pela transmissão simultânea via Rádio e TV
Justiça.

Por isso, não sobram desculpas às desinformações que o colunista veicula
em artigos que mais servem ao escracho do que ao esclarecimento. Se
houvesse assistido às sessões relativas à constitucionalidade da Lei da
Ficha Limpa, Gaspari saberia que a autocrítica -e não crítica- que fiz
acerca da oportunidade do segundo julgamento teve lugar no plenário da
corte, perante meus pares.

Aliás, reafirmo as posições ali externadas, que, longe de ferirem o decoro
ou a elegância, contribuem para o enriquecimento do debate, o primeiro
passo para o consenso.
Mas não: na pressa em escancarar a notória americanofilia, Gaspari prefere
incorrer em distorções grotescas, na já bem conhecida avidez de apontar, à
patuleia, as falhas de Pindorama, para usar o corrosivo jargão do
jornalista.

Uma pena. Não fosse assim, poderia ver os esforços que todo o Judiciário
vem fazendo rumo à modernização, capitaneado pelo Supremo, com o auxílio
do Conselho Nacional de Justiça. O mesmo e velho Supremo que bancou
sucessivos habeas corpus para os dissidentes da ditadura, enquanto áulicos
do regime bajulavam generais.

Pela resistência e pela envergadura, o Supremo continua personificando,
para o brasileiro, a estabilidade das instituições, da democracia
-conquista difícil e das mais valiosas -, agora um valor em si mesmo para
a população.

Esses e outros aspectos importantes passam batido na visão imediatista e
popularesca de gente como Gaspari, mais preocupada em criticar do que em
compreender a realidade brasileira.

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GILMAR FERREIRA MENDES, mestre pela UnB (Universidade de Brasília) e
doutor em direito do Estado pela Universidade de Münster (Alemanha), é
ministro do Supremo Tribunal Federal."

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