
Do "Terra Magazine"
"Marcelo Semer
De São Paulo
Com o Supremo recomposto, a partir das próximas semanas, prevê-se mais uma daquelas discussões intermináveis.
Por insistência do governo italiano, e pela firme anuência do presidente Cezar Peluso, o fantasma do caso Battisti deve voltar a assombrar a Corte.
No meio do ano passado, depois de um exaustivo debate, o STF decidiu, quase na bacia das almas, que o presidente da República é quem daria a última palavra sobre o assunto.
Na semana que passou, Dilma Rousseff respondeu a seu colega Giorgio Napolitano, explicando que a extradição ainda depende de uma nova decisão final da Justiça.
Mais do que um jogo-de-empurra, estamos diante de um desgastante cabo-de-guerra. Inútil, como quase todas as demonstrações explícitas de poder.
Questões relevantes estão à espera de julgamento no STF: a Adin do estado laico, a união homoafetiva, aborto de fetos anencefálicos, cotas raciais, terceirizações pelas OS, afora um gigantesco acervo de recursos que aguarda pauta.
Ainda assim, o ministro Cezar Peluso desarquivou o caso Battisti no período de recesso e se manifestou pela necessidade de rediscutir o tema, insinuando sua frontal contrariedade à decisão tomada por Lula.
Peluso sugere, em suma, que os ministros sejam fiscais do Executivo no âmbito de uma decisão diplomática, agora em homenagem à integridade de um tratado internacional.
Curiosamente, o próprio STF vem ignorando a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, como se a aceitação da competência do tribunal da OEA também não decorresse da validade de um tratado internacional.
Por que alguns acordos deveriam ser seguidos e outros maltratados?
A repercussão do caso no país também é inusitada.
É estranho que a luta armada italiana possa ter mais relevância do que os crimes cometidos na época da nossa ditadura militar. Será mais fácil olhar os calos da mão do vizinho?
A discussão do caso Battisti, como está posta, entretanto, envolve menos os limites da liberdade italiana no passado ou a legitimidade e integridade de seu governo no presente, do que o propriamente o futuro da democracia no Brasil.
Tradicionalmente, o STF sempre agiu nas extradições em uma função garantista, avaliando a compatibilidade do pedido do país estrangeiro com as nossas leis.
Podia ele mesmo negar o pedido, se vislumbrasse violação dos princípios defendidos pelo Estado brasileiro. Mas nenhum pedido era deferido sem a chancela do presidente da República.
Em resumo, a aceitação do STF sempre funcionou como uma condição necessária, mas não suficiente à extradição.
O próprio tribunal também cultivou a tradição de arquivar o processo de extradição, com a concessão de um refúgio pelo governo, sugestão que foi dada pela própria Procuradoria Geral da República. O parecer do MP não foi acatado e há quem pretenda que o STF simplesmente decida por cima da decisão do presidente, o que na prática significa decidir em seu lugar.
A reforma do Judiciário teve como principal consequência o fortalecimento de poder do Supremo.
Resultou em uma concentração de competências e uma hierarquização sem precedentes na Justiça, sacrificando-se a independência dos juízes, pretensamente para reduzir a duração dos processos.
Conforme as recentes pesquisas do Ipea e FGV têm nos mostrado, todavia, a satisfação da sociedade com o Judiciário está em queda, mesmo depois de seis anos destas mudanças.
O maior protagonismo conferido à nossa Corte Suprema pouco têm ajudado para criar uma boa percepção do funcionamento de justiça, quando não prejudicado.
A hipertrofia do STF ainda não está na agenda das preocupações políticas. Mas deveria.
Os parlamentares, por exemplo, não se aperceberam a tempo da usurpação de poder que a criação das Súmulas Vinculantes produziram. Obrigatórias na Justiça, mas também fora dela, as súmulas são enunciados superiores às próprias leis. Uma espécie de pequena Constituição ¿porém, sem povo. A Súmula das Algemas bem mostrou o quanto pode servir para uma profilaxia de poder.
Que o ativismo dos juízes seja empregado para a garantia de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal é não apenas possível como fortemente desejável .
De que outra maneira se fariam cumprir direitos que o próprio constituinte elencou como prioridades, quando são expressamente ignorados pelos governantes em suas políticas públicas?
Obrigar um município a construir creches para menores de seis anos, diante da previsão de abrigo constitucional, é irrefutável.
Mas que o ativismo sirva de álibi para a transcendência do poder, permitindo que o Judiciário invada funções típicas dos representantes eleitos é, no mínimo, temerário.
Na seara da política, nós até podemos gostar quando os juízes acertam.
Mas o que fazer quando eles erram? "
Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
Carlos, talvez o fator impressa seja mais determinante neste contexto do que o próprio caso em si, ademais o país tem decisões soberanas que não podem serem postas sob pressão. E no caso concreto, os livros são escritos pelos vencedores.
ResponderExcluirCrítico apenas o fato que na reportagem mencionar que a súmula vinculante cria uma "mini-constituição".Pois na prática não é isto que observo.
Irei começar a ler o livro "Declínio e queda do império romano" de Edward Gibbon, parece-me um bom livro. Depois posto se gostei, no próximo post poderia recomendar bons livros, não é?
Obrigado