São Fco.

São Fco.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Disputa de poder está por trás do caso Battisti


Do "Terra Magazine"

"Marcelo Semer
De São Paulo

Com o Supremo recomposto, a partir das próximas semanas, prevê-se mais uma daquelas discussões intermináveis.

Por insistência do governo italiano, e pela firme anuência do presidente Cezar Peluso, o fantasma do caso Battisti deve voltar a assombrar a Corte.

No meio do ano passado, depois de um exaustivo debate, o STF decidiu, quase na bacia das almas, que o presidente da República é quem daria a última palavra sobre o assunto.

Na semana que passou, Dilma Rousseff respondeu a seu colega Giorgio Napolitano, explicando que a extradição ainda depende de uma nova decisão final da Justiça.

Mais do que um jogo-de-empurra, estamos diante de um desgastante cabo-de-guerra. Inútil, como quase todas as demonstrações explícitas de poder.

Questões relevantes estão à espera de julgamento no STF: a Adin do estado laico, a união homoafetiva, aborto de fetos anencefálicos, cotas raciais, terceirizações pelas OS, afora um gigantesco acervo de recursos que aguarda pauta.

Ainda assim, o ministro Cezar Peluso desarquivou o caso Battisti no período de recesso e se manifestou pela necessidade de rediscutir o tema, insinuando sua frontal contrariedade à decisão tomada por Lula.

Peluso sugere, em suma, que os ministros sejam fiscais do Executivo no âmbito de uma decisão diplomática, agora em homenagem à integridade de um tratado internacional.

Curiosamente, o próprio STF vem ignorando a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Araguaia, como se a aceitação da competência do tribunal da OEA também não decorresse da validade de um tratado internacional.

Por que alguns acordos deveriam ser seguidos e outros maltratados?

A repercussão do caso no país também é inusitada.

É estranho que a luta armada italiana possa ter mais relevância do que os crimes cometidos na época da nossa ditadura militar. Será mais fácil olhar os calos da mão do vizinho?

A discussão do caso Battisti, como está posta, entretanto, envolve menos os limites da liberdade italiana no passado ou a legitimidade e integridade de seu governo no presente, do que o propriamente o futuro da democracia no Brasil.

Tradicionalmente, o STF sempre agiu nas extradições em uma função garantista, avaliando a compatibilidade do pedido do país estrangeiro com as nossas leis.

Podia ele mesmo negar o pedido, se vislumbrasse violação dos princípios defendidos pelo Estado brasileiro. Mas nenhum pedido era deferido sem a chancela do presidente da República.

Em resumo, a aceitação do STF sempre funcionou como uma condição necessária, mas não suficiente à extradição.

O próprio tribunal também cultivou a tradição de arquivar o processo de extradição, com a concessão de um refúgio pelo governo, sugestão que foi dada pela própria Procuradoria Geral da República. O parecer do MP não foi acatado e há quem pretenda que o STF simplesmente decida por cima da decisão do presidente, o que na prática significa decidir em seu lugar.

A reforma do Judiciário teve como principal consequência o fortalecimento de poder do Supremo.

Resultou em uma concentração de competências e uma hierarquização sem precedentes na Justiça, sacrificando-se a independência dos juízes, pretensamente para reduzir a duração dos processos.

Conforme as recentes pesquisas do Ipea e FGV têm nos mostrado, todavia, a satisfação da sociedade com o Judiciário está em queda, mesmo depois de seis anos destas mudanças.

O maior protagonismo conferido à nossa Corte Suprema pouco têm ajudado para criar uma boa percepção do funcionamento de justiça, quando não prejudicado.

A hipertrofia do STF ainda não está na agenda das preocupações políticas. Mas deveria.

Os parlamentares, por exemplo, não se aperceberam a tempo da usurpação de poder que a criação das Súmulas Vinculantes produziram. Obrigatórias na Justiça, mas também fora dela, as súmulas são enunciados superiores às próprias leis. Uma espécie de pequena Constituição ¿porém, sem povo. A Súmula das Algemas bem mostrou o quanto pode servir para uma profilaxia de poder.

Que o ativismo dos juízes seja empregado para a garantia de direitos fundamentais previstos na Constituição Federal é não apenas possível como fortemente desejável .

De que outra maneira se fariam cumprir direitos que o próprio constituinte elencou como prioridades, quando são expressamente ignorados pelos governantes em suas políticas públicas?

Obrigar um município a construir creches para menores de seis anos, diante da previsão de abrigo constitucional, é irrefutável.

Mas que o ativismo sirva de álibi para a transcendência do poder, permitindo que o Judiciário invada funções típicas dos representantes eleitos é, no mínimo, temerário.

Na seara da política, nós até podemos gostar quando os juízes acertam.

Mas o que fazer quando eles erram? "

Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.

Um comentário:

  1. Carlos, talvez o fator impressa seja mais determinante neste contexto do que o próprio caso em si, ademais o país tem decisões soberanas que não podem serem postas sob pressão. E no caso concreto, os livros são escritos pelos vencedores.

    Crítico apenas o fato que na reportagem mencionar que a súmula vinculante cria uma "mini-constituição".Pois na prática não é isto que observo.

    Irei começar a ler o livro "Declínio e queda do império romano" de Edward Gibbon, parece-me um bom livro. Depois posto se gostei, no próximo post poderia recomendar bons livros, não é?
    Obrigado

    ResponderExcluir

Serão aceitos comentários de todas as posições ideológicas, desde que sejam feitas sem agressões ou termos chulos.