MARISTELA BASSO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O CHOQUE impetuoso entre o juiz do Supremo Tribunal espanhol Luciano Varela e seu conterrâneo também magistrado Baltasar Garzón não é apenas mais um embate entre juízes que defendem teses diversas ou têm entendimentos antagônicos sobre como aplicar a lei.
Trata-se, sem dúvida, de uma disputa entre Titãs. O juiz Luciano Varela sustenta o rigorismo da lei e, em nome dela, põe o colega Garzón no banco dos réus, o ameaça com a perda do cargo e o penaliza a ficar até vinte anos fora da vida pública.
Garzón, por outro lado, em nome do interesse público, reabriu a ferida não cicatrizada dos desaparecimentos do "franquismo" ao receber e processar o pedido de apuração de responsabilidades apresentado pela "Associação das Vítimas" daquele período histórico.
Varela sustenta que Garzón prevaricou, extrapolou competências, legislou quando deveria apenas aplicar a lei de anistia dos crimes do passado cometidos na Espanha. Garzón diz não ter prevaricado e que a memória histórica de seu país exige que se faça justiça.
E, em nome dela, Garzón foge do rigorismo dos procedimentos penais e dos preciosismos da linguagem jurídica e assume o controle do processo com mãos firmes e determinadas. Manda fazer exumações, abrevia procedimentos longos e burocráticos, manda ouvir testemunhas dentro e fora da Espanha, pede opiniões legais para os mais afamados jurisconsultos internacionais.
Com isso, tenta aplacar as dores do passado e responder à sociedade fazendo justiça -ainda que tardia.
Mas a magistratura togada e encastelada se revolta. A conduta de Garzón gera enorme instabilidade e incerteza jurídica. O que será do Direito se os juízes resolverem legislar nos casos concretos, determinar regras procedimentais novas e afastar as hipóteses de prescrição para os crimes cometidos no passado? E se a definição do que seja ou não crime ficar nas mãos deles -juízes?
Garzón tenta dizer (lá de seu banquinho dos réus) que essas preocupações da magistratura são legítimas, mas não se aplicam ao caso das vítimas do franquismo, porque elas foram submetidas a crimes contra a humanidade que, como tais, são imprescritíveis e podem ser submetidos à jurisdição de qualquer juiz espanhol, uma vez que crimes cometidos antes de 1998 não podem ser levados ao Tribunal Penal Internacional.
Ele insiste sustentando que, na função de juiz, é sua obrigação responder à moralidade e sensibilidade médias da sociedade no momento em que julga. Foi apenas isso que ele procurou fazer, sem, contudo, atentar para a possível desmesurada reação de grupos de ultradireita representados pelos Manos Limpias, Falange Española de las JONS e Libertad y Identidad.
Por outro lado, não longe dos tribunais, o povo espanhol -bravo, honrado e altivo- não se cala e, ao lado de Garzón, clama, reclama, declama para que ele fique mais vinte anos. E o resto do mundo também.
A autora é professora de direito internacional da Faculdade de Direito da USP
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