São Fco.

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Entrevista do Pres. Lula ao El País - parte I

Do blog Óleo do Diabo

“Prefiro carnaval à guerra.” Pousa sua mão de operário sobre meu joelho, num gesto de cumplicidade, de camaradagem, de evidente franqueza, porque essa é a sua força e a sua convicção, a de comportar-se como é, como verdadeiramente lhe vêem os brasileiros, “sou um deles, um como eles”, vem de onde eles vêm, fala como eles falam, “não sou um estranho no ninho”, e até chegar ao poder se vestiu como eles se vestem, “ainda que trabalhei durante vinte e sete anos com um macacão, nunca me senti à vontade; com dois meses de gravata não tive dificuldade em acostumar-me a ela, é um belo adereço”. Me vêm à mente a reflexão de Sancho Panza sobre como será seu reinado sobre uma ilha, “vistam-me como quiserem, que de qualquer maneira que esteja vestido serei Sancho Panza” porque a batina não faz o cura, e Lula é Lula qualquer que seja seu traje, “me comunicaram que teria de ir de fraque ao jantar no palácio com o rei da Espanha, mandei dizer a Juan Carlos que eu não usava isso e aqui no Brasil muitos me criticaram, que falta de elegância!, de capacidade de exercer a presidência!, até que o rei me chamou, venha como queira, de terno e gravata, porque não quero ser visto como um estranho em meu povo, o que acontece é que a liturgia do poder está toda preparada para te distanciar do povo, quando és candidato caminha ao ar livre, cumprimentando as pessoas, mas uma vez que chega a presidente te botam num carro blindado e nunca mais vês o rosto dos cidadãos”.

Me pergunto a que se parecem mais as greves, se a guerras ou a carnavais. Luiz Inácio Lula da Silva estreou sua carreira política em mobilizações populares, na agitação das ruas e na luta nas portas de fábrica em defesa dos direitos dos trabalhadores. Quase um milhão e meio de operários foram a greve, liderados por ele, durante o ano de 1979, e a partir dessa data este corajoso dirigente sindical empreendeu uma carreira política cheia de altos e baixos que o levariam, um quarto de século depois, à presidência da república. “É notável que nem eu nem o meu vicepresidente, um empresário de êxito, tenhamos diploma universitário”, assinala com certo tom de orgulho que irrita a oposição pela ambigüidade que essa mensagem pode representar em um país em que a educação é uma meta fundamental do governo e empenho necessário para acabar com as desigualdades e a pobreza. Mas o que ele deseja transmitir é que a democracia funciona no Brasil, que não os méritos profissionais, acadêmicos ou de qualquer outro gênero, e sim a vontade dos eleitores o que é decisivo para chegar ao poder. Um poder que Lula não terá mais, ao menos formalmente, a partir do próximo mês de dezembro, após oito anos de exercício no cargo, do qual sai cercado de tal popularidade que alguns esperam vê-lo levitar a qualquer momento, como fazia o padreco de Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão, só que a base de ingerir café brasileiro, que ele consome a cada instante com avidez, em vez de xícaras de chocolate.

O momento mais extraordinário do poder é o período entre o dia da vitória e a posse. Logo se vê que as coisas não são tão fáceis, que se está diante de uma série de obstáculos. Eu teria motivos de sobra para dizer que a mim o poder me deu mais alegrias que tristezas, porque poucas vezes na história do Brasil aconteceram coisas tão importantes como durante o meu governo, mas continuarei lamentando pelo que não pude fazer, a reforma do Estado, por exemplo. Não fomos capazes de lhe dar maior agilidade; desde que tomamos uma decisão até executá-la, topa-se com quinhentos obstáculos em nome da democracia. Está o Congresso Nacional, com suas duas câmaras, a administração pública, os sindicatos, a justiça, as questões ambientais, onde as Ongs são muito ativas... Ou seja, que passam dois ou três anos antes que um projeto se cristalize. Faz falta um consenso que nos permita eliminar tantas dificuldades e atrasos. Não podemos renunciar à fiscalização, mas tampouco é aceitável usá-la para impedir que se façam as coisas que o Brasil necessita.”

Seu pragmatismo, sua cordialidade, seu bom senso, tudo nele me lembra o governador de Barataria [Sancho Panza, no romance de Cervantes]. Quase oito anos após ocupar o principal cargo da república, suas maneiras pessoais, seu método de trabalho, seu ar decidido e astuto são os mesmos do Lula jovem que, fugindo da burocracia sindical, reunia-se às tardes no bar da Tia Rosa em São Bernando do Campo, onde ele ainda mantém sua residência familiar. Ali, com seus companheiros de luta, um grupo de amigos antes de ser um comitê organizado, preparavam, entre um copo e outro, as mobilizações em defesa de melhores salários para os trabalhadores. Nenhuma ideologia alimentava suas ações, que em seguida foram apoiadas, todavia, por movimentos católicos de base. “O PT não existiria sem a ajuda de milhares de padres e comunidades cristãs do Brasil, deve muito ao trabalho da Igreja, à teologia da libertação, aos sacerdotes progressistas. Tudo isso contribuiu para minha formação política, a construção do PT e a minha chegada ao poder. Minha relação com a Igreja católica foi e continua sendo muito forte, mas somos um país laico, tratamos todas as religiões com respeito”.

Interrompe-o por um momento Gilberto Carvalho, seu chefe de gabinete, “este era seminarista, ia ser padre, mas abandonou para entrar no PT, para construir comigo”, e despacha alguns assuntos à sombra de um crucifixo gigantesco que preside sua mesa de trabalho, enquanto eu imagino que para alguns militantes da época a agitação política era também uma espécie de sacerdócio. A influência religiosa (“esta é a Igreja mais progressista da América Latina, provavelmente do mundo”) é evidente também no tratamento das leis de aborto no Brasil, ainda que o presidente busca manter equidistância. O Vaticano “tem uma atitude muito conservadora sobre o ponto. No Brasil, o aborto está proibido, salvo em caso de estupro da mãe. Eu, como cidadão, sou contrário ao aborto, e não creio que haja nenhuma mulher que seja favorável a ele porque gera um grande sofrimento a quem o pratica. Mas como chefe de Estado penso que se trata de uma questão de saúde pública. Devemos proteger as meninas que decidem abortar por si mesmas metendo-se agulhas no útero e coisas assim. O Estado tem obrigação de atender a essas pessoas”.

Para os progressistas europeus, que adoram Lula, uma declaração deste gênero pode resultar decepcionante, tanto como a que ele já fez muitas vezes no sentido de que não se considera de esquerda. “Minha trajetória, meu perfil político, minha vida no sindicato, a criação do PT, me caracterizam, desde logo, como um esquerdista. Mas o próprio PT é uma novidade na esquerda mundial. Nasceu contra todos os dogmas dos partidos marxistas-leninistas, que obedeciam fielmente à Rússia ou China. No início era algo parecido a uma torcida de futebol; um grupo de trabalhadores que, junto ao movimento social, a Igreja Católica, e alguns intelectuais que havia acreditado e participado da luta armada, decidiram criar um partido político. Não tínhamos então um programa definido e eu nunca gostei que me enquadrassem, menos ainda ao assumir a presidência. Um chefe de Estado não é uma pessoa, é uma instituição, não tem vontade própria todo santo dia, tem que levar a cabo os acordos que sejam possíveis. Aprendi isso no poder e creio que foi bom para o Brasil. Não pode ser que eu goste de um presidente porque é de esquerda e de outro não, por ser direitista. Me dei bem com Aznar, e me dou bem com Zapatero; tenho que me relacionar com Piñera, do Chile, da mesma forma que com Bachelet. No exercício do poder sou um cidadão, como diria?, multinacional, multiideológicos, não?”

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