São Fco.

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segunda-feira, 10 de maio de 2010

Entrevista do Pres. Lula ao El País - parte III


O lulismo, se é que existe, tem suas raízes no sindicalismo, na luta como pressão e o acordo como resposta. “O chamado mundo desenvolvido tem que compreender que a geopolítica mudou. A democratização da África e o crescimento de países como China, Índia e alguns da América do Sul, sugerem uma nova dimensão. Eu não quero a guerra, sou um homem de diálogo, e na questão nuclear o Brasil tem uma política muito definida. Quero esgotar até o último minuto as possibilidades de um pacto com o presidente do Irã para que seu país possa continuar enriquecendo urânio, tendo nós a tranquilidade que ele só o usará para fins pacíficos. Meu limite são as decisões da ONU, a qual, aliás, pretendo mudar porque tal como está representa muito pouco. Por que o Brasil não é membro do Conselho de Segurança? Por que não é a Índia? Por que não há nenhum Estado africano? Se a ONU continua assim débil, sem representatividade, com países com direito de veto, nunca vai servir corretamente à governança global que precisamos”.

Felipe González disse que expresidentes são como vasos chineses. Todo mundo em casa sabe que se trata de peças valiosas que valem a pena conservar, ainda que não necessariamente apreciam sua beleza e não sabem onde colocá-los: estejam onde estejam, sempre são um estorvo. A partir do próximo mês de dezembro, Luiz Inácio Lula da Silva, um dos políticos mais carismáticos, admirados e surpreendentes do último meio século, engrossará a coleção das grandes porcelanas. Os visitantes dos museus de cera venerarão sua imagem, como a de Lincoln, a de Mandela, a de tantos grandes nomes capazes de surge do nada. Cheio de vida, desbordante de idéias, não o imagino retirado em seu apartamento de São Bernardo, partilhando com seus vizinhos as nostalgias de qualquer tempo passado. “O melhor serviço que um expresidente pode prestar à república é ficar calado, deixar governar quem ganha as eleições e permanecer em silêncio”. Este silêncio resignado combina com Sancho, mas eu não o imagino para Lula, quando há tanto para denunciar, tanto para exigir, tanto para propor. Então, talvez se limite a estar ausente, ou distante. “Vou sair do governo havendo colhido um montão de políticas exitosas e quero partilhar essa aprendizagem, essa autêntica lição de vida, com países mais pobres da América Latina e África. Não sei se o farei através de uma fundação, porque em nenhum caso quero empreender nada que não esteja em consonância com o governo. Só quero transmitir aos demais a experiência que adquiri, porque os pobres não tem acesso aos governantes, os pobres não vão aos coquetéis, claro, e olha que não há político que ganhe eleição falando mal deles, pode insultar os banqueiros, os grandes empresários, mas os pobres... de nenhuma maneira, em campanha o pobre é a coisa mais extraordinária do mundo. Isso sim, uma vez que o candidato ganha a eleição ele vai terminar seu mandato sem reunir-se com um pobre uma única vez, só sabe que existem pelo que lê nos jornais, não há interação, não há vínculo. Eu, nos próximos Natais, quando minha gestão chegar ao fim, quero convidar de novo aos catadores de papel de São Paulo, há oito anos que me reúno com eles no palácio nessas datas (também o fiz com os sem-teto e os sem-terra), e comprovamos que essa gente não quer parar de catar papel, mas aspira uma existência mais digna, ou seja, que organizemos cooperativas, centenas delas em todo Brasil, financiadas pelo Estado, que as permitam trabalhar, centenas de milhares de pessoas, capazes de levar todos os dias para casa algo que começar, graças ao resultado de seu trabalho”.

Quando tudo isso acontecer, o palácio presidencial já terá sido reconstruído. De momento, Lula aloja-se em escritórios emprestados pelo Centro Cultural Banco do Brasil, enquanto os operários se esforçam para recuperar as estruturas danificadas do Palácio do Planalto, que não pode participar da celebração do cinqüentenário de Brasília. Mas no próximo dia 23 de dezembro, o presidente se despedirá dos catadores paulistas nos aposentos elegantes e sóbrios da sede do primeiro magistrado da nação. Talvez o faça pensando, como Sancho em sua partida, que “saindo eu nu como saio, não é preciso outro sinal para dar a entender que governei como um anjo”. Seguro estou, ao menos, que o cronista deste momento vindouro poderá relatá-lo novamente com as palavras de Cervantes: “abraçaram-no todos, e ele, chorando, abraço a todos, e os deixou admirados, tanto de suas razões como de sua determinação, tão resoluta e tão discreta”. É isso.

(Tradução: Miguel do Rosário, do Óleo do Diabo).

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